ELOGIO À LOUCURA - Parte 07 - Erasmo de Rotterdam
Mas, embora o meu elogio seja uma fonte inesgotável, não é justo abusar da vossa paciência entretendo-vos ainda mais com esta minha declamação, razão por que vos livrarei logo da fadiga de vossa atenção. Apenas vos peço um pequeno favor, necessário à minha glória. Talvez haja aqui presentes (uma vez que os maus costumam imiscuir-se sempre entre os bons), alguns sábios que digam ser eu bela somente aos meus próprios olhos, e não faltarão senhores legistas que aleguem o fato de eu não haver citado nenhum texto em meu favor. Citemos, pois, como fazem eles, a torto e a direito.
Antes de mais nada, não se pode pôr em dúvida o conhecido provérbio que diz: Quando falta uma coisa, é preciso representá-la, o que é inteiramente confirmado por esta sentença que se costuma ensinar até aos meninos: Procura-se muita sabedoria para se poder passar por louco. Julgai, pois, se a loucura deve ou não ser incluída entre os maiores bens, quando os próprios sábios tributavam louvores à sua imagem e à sua sombra falaz. Mas, Horácio, que a si mesmo se chama o lúcido e bem nutrido porco de Epicuro, exprime a coisa com maior naturalidade, quando aconselha a temperar a loucura com a sabedoria. Ele desejaria, é certo, que essa loucura fosse de curta duração, mas, a esse respeito, revela, a meu ver, pouco critério. O mesmo poeta diz nas suas Odes: É um grande prazer ser louco quando se deseja sê-lo. Em outro lugar, diz preferir parecer estranho e ignorante a parecer sábio e furioso. Homero, que por toda a parte louva muitíssimo o seu Telêmaco, não deixa de o chamar várias vezes de menino tolo; e os trágicos gostam de dar aos jovens o epíteto de tolo e imprudente, como um epíteto de bom augúrio. Qual é o argumento da divina Ilíada? Não serão, talvez, os furores e as loucuras dos reis e dos povos? Cícero nunca se orientou tão bem, por mim, como quando disse: Todas as coisas estão cheias de loucura. Ora, convireis que, quanto mais extenso é um bem tanto mais excelente é ele.
Mas, é possível que os autores citados tenham pouca autoridade para os cristãos. Pois bem: apoiarei, se julgais conveniente, ou, para exprimir-me teologicamente, fundarei o meu elogio no testemunho das sagradas escrituras. Permiti que o faça, senhores nossos mestres, é o que vos peço humildemente. A empresa é bastante difícil e exigiria pelo menos uma boa invocação às musas; mas, por outro lado, seria uma indiscrição fazer descer pela segunda vez, do monte Helicão, essas nove virgenzinhas, pois bem vedes que o caminho é muito longo. Além disso, a matéria que devo abordar nada tem que ver com Apolo. Portanto, seria melhor que, dispondo-me eu a me arvorar em teóloga e a correr sobre os espinhos teologais, se dignasse o espírito de Scot a passar da sua Sorbonne para o meu ânimo. Ah! queira Deus que esse beato espírito, mais pungente que o ouriço e mais agudo que o porco-espinho, inflame a minha mente! Depois, quando eu tiver acabado, que voe por onde mais lhe agradar, inclusive entre os corvos. Praza igualmente aos céus que me seja permitido mudar de aspecto, vestindo um hábito teologal! Vou, porém, experimentar, e, quando me ouvirdes impingir tanta teologia, não suspeiteis que eu tenha forçado e espoliado as arcas dos nossos mestres. Mas, afinal, não me parece surpreendente que, tendo mantido por tantos séculos uma estreita amizade com os teólogos, tenha eu sido atacada por um pouquinho da sua sublime ciência. E porque não poderia acontecer-me tal coisa? Não será, talvez, verdade que até o irrequieto Príapo, embora sendo um deus de curto entendimento, ao escutar o mestre ler grego em voz alta, guardou algumas palavras na memória e as reteve como um doutor? E que diríamos do galo de Luciano? Como se sabe, depois de ter vivido longo tempo com os homens, articulou inesperadamente a lingua e falou como eles. Mas, dito isso, comecemos sob os auspícios da Fortuna.
O Eclesiastes, capítulo primeiro, versículo... versículo... esperai um pouco... oh! meu Deus! não me recordo mais, e assim também a página, a linha, etc. (pois que, para citar teologicamente, é preciso dizer tudo). Mas, no Eclesiastes está escrito que o número dos loucos é infinito. Ora esse número infinito não abrangerá a todos os homens, com poucas exceções, se é que já houve alguns? Mais ingenuamente, porém, o confessa Jeremias: Todos os homens — diz ele no capítulo X — tornaram-se loucos à força de sabedoria. E atribui a sabedoria somente a Deus, deixando aos homens a loucura como predicado. Um pouco antes, diz ele: O homem não deve gabar-se da sua sabedoria. Mas, porque dizeis isso, oh santo, oh divino oráculo do futuro? É porque (assim me parece ouvi-lo responder) o homem não tem nenhuma idéia da sabedoria. Voltemos ao Eclesiastes. Quando Salomão, esse grande monarca iluminado do céu, faz aquela patética exclamação moral: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade! — não vedes, senhores, que, sem gaguejar, ele declara que a vida humana, como também eu já vos disse tantas vezes, não é outra coisa senão um divertimento da Loucura? E não foi também isso o que Cícero, com grande honra para mim, repetiu muito depois, isto é, que tudo está cheio de loucura? E quando o citado Eclesiastes diz ainda que o louco muda como a lua e o sábio é estável como o sol, — que imaginais que isso signifique? Não significará, talvez, que todos os homens são loucos e que somente a Deus pertence o título de sábio? Com efeito, por lua entendem os intérpretes a natureza humana, e por sol a fonte da verdadeira luz, que é Deus. Também o Salvador apoia essa verdade quando diz, no Evangelho, que o epíteto de bom só cabe a Deus. Ora, segundo os estóicos, sábio e bom são dois sinônimos; portanto, todos os homens, sendo maus, são também, por uma conseqüência necessária, todos malucos.
Diz ainda Salomão no capítulo XV: A tolice é a alegria do tolo, o que significa que, sem a loucura, nada se acha de agradável na vida. E em outra passagem: Progredir na ciência é o mesmo que progredir na dor, e, onde há muito sentimento, há também muita contrariedade. Não repetirá esse mesmo excelente pregador, no capítulo VII, o mesmo pensamento? — A tristeza — diz ele — mora no coração do sábio, e a alegria no do tolo. Não contente de ter conhecido a fundo a sabedoria, teve ele o desejo de conhecer também a mim. Pensais que eu esteja gracejando? Ouvi o oráculo, capitulo I: Apliquei-me ao conhecimento da prudência e da doutrina, dos erros e da loucura. É preciso notar que, nessa passagem, sou citada em último lugar, a fim de me ser conferida a honra que mereço, como posso prová-lo. De fato, foi o Eclesiastes que o escreveu: ora, na ordem eclesiástica, segundo o cerimonial em uso, o primeiro em dignidade é o que ocupa o último posto, de acordo com o preceito de Cristo.
Que a loucura é realmente superior em dignidade à sabedoria prova-o, à evidência, o autor do Eclesiastes, seja ele quem for, no capitulo XLIV. Mas, meus caros ouvintes, antes de citar essa passagem, quero fazer um pacto convosco: juro-vos por Hércules que nunca mais vos falarei disso, se não responderdes favoravelmente às minhas perguntas, a exemplo daqueles que, segundo Platão, discutiam com Sócrates. Dou, pois, início à minha indução.
Dizei-me, por favor, o que será melhor ocultar: as coisas raras e preciosas, ou as vis e triviais. Como, não respondeis? Porque permaneceis imóveis como se não passásseis de estátuas? Mas, não será o vosso silêncio que me fechará a boca. Os gregos responderão por vós e dirão que a bilha se deixa sem receio à porta, ao passo que as coisas preciosas se conservam escondidas. Receando, porém, que profaneis essa sentença, rejeitando-a, acho conveniente advertir-vos que é de Aristóteles, o deus dos nossos mestres. Continuemos: haverá aqui alguém bastante louco que, de bom grado, seja capaz de abandonar na rua o seu dinheiro e as suas jóias? Não o creio, naturalmente! Todos vós, ao contrário, me pareceis, se não me engano, desses homens que costumam ocultar muito bem tudo o que possuem de precioso e que só se descuidam das coisas que pouco ou nada importa perder. Assim, pois, exigindo a prudência que se escondam as coisas de valor e que não se deixem expostas senão as coisas de pouca valia, a minha causa venceu, triunfou! O Eclesiastes ordena que se manifeste a sabedoria e se oculte a loucura. Textualmente: O homem que esconde a própria loucura é melhor que o que esconde a própria sabedoria. Mas, isso não basta. As sagradas escrituras atribuem ainda ao louco a candura de ânimo, da qual não é suscetível o sábio, embora se julgue sempre melhor do que os outros. É, pelo menos, como interpreto a seguinte passagem do Eclesiastes, capítulo X: Ao passear, o louco supõe que todos os que encontra sejam loucos como ele. Quem pode deixar de admirar essa candura e essa sinceridade? Naturalmente, todos os homens fazem um alto conceito de si mesmos, mas a loucura torna o homem tão humilde que procura dividir a sua virtude com todos os outros homens e comunicar-lhes a glória do seu mérito. Salomão julgava ter chegado a tanta perfeição, dizendo no capítulo XXX: Eu sou o mais louco de todos os homens. São Paulo, esse evangelista, esse apóstolo das gentes, não passou sem atribuir-se o meu nome, pois disse aos coríntios: Como louco, eu afirmo que sou o maior de todos (de tal maneira considerava ele vergonhoso ser superado em loucura). Mas, enquanto isso, insurgem-se contra mim certos teólogos grecistas, impingindo como novidades coisas rançosas e antigas e se esforçando por cegar o vulgo com anotações que, além do mais, são pensamentos roubados aqui e ali: entre eles, encontra-se, se não em primeiro, pelo menos em segundo lugar o meu caro Erasmo, que freqüentemente cito para lhe prestar uma homenagem (98). — Oh Loucura! — exclamam eles, — tu te mostras verdadeiramente digna do teu nome, tanto em tuas interpretações como em tudo mais! O pensamento do apóstolo é bem diverso daquele que tu sonhas: não há a intenção de persuadir que ele seja mais louco que os outros; depois de ter dito que eles são ministros de Cristo e eu também o sou, como se não bastasse igualar-se aos outros, acrescenta, corrigindo-se: E o sou mais do que eles, sentindo-se não somente igual aos outros apóstolos no ministério do evangelho, mas ainda um tanto superior. Para evitar o escândalo que semelhante declaração poderia provocar, São Paulo chama-se louco, pois só os loucos têm o direito de dizer tudo sem risco de ofender alguém. Mas, seja qual for a interpretação que se dê ao que escreveu São Paulo, deixo que o discuta quem quiser. Quanto a mim, prefiro ser atacada pelos fogos desses grandes, desses enormes, desses gordos, desses célebres teologastros, com os quais a maior parte dos doutores prefere correr o risco de enganar-se a conhecer a verdade ocultada por esses séquito de pessoas de três línguas (99), às quais se dá tanta importância como às gralhas. Além disso, tenho em meu favor glorioso teólogo, que prudentemente julgo não dever nomear, pois sei muito bem que as nossas gralhas não deixariam de me citar a fábula do Asinus ad lyram (100). Esse doutor assim explica magistralmente, teologicamente, essa passagem: Eu o digo com menor sabedoria, eu o sou mais do que eles. Faz disso um novo capítulo — e assim é quem exige uma dialética consumada — que vos acrescenta uma nova secção. Eis, não só quanto à forma, mas também quanto ao fundo, as palavras do meu teólogo: Eu o digo com menor sabedoria, isto é, se vos pareço louco quando me igualo aos falsos apóstolos, mais tolo vos parecerei ainda se quiser preferir-me a eles. Depois, como que divagando, passa de repente a outro assunto.
Mas, como sou louca ao querer atormentar meu cérebro com a interpretação de um só teólogo! Pois não conquistaram os nossos teólogos o direito público de esticar o céu, isto é, as escrituras, como se fossem uma pele? Se devemos dar crédito ao douto São Jerônimo, que possuía cinco línguas, o próprio São Paulo usava do referido direito, encontrando-se em suas obras coisas que parecem opostas às sagradas escrituras. Por essa pia fraude do apóstolo das gentes, podemos julgar todas as outras. Tendo São Paulo observado, certa vez, uma inscrição que os atenienses tinham posto sobre um altar, na qual se lia: Aos deuses da Ásia, da Europa e da África, aos deuses ignotos e estranhos, — trancou a inscrição e, tomando somente a parte julgada vantajosa à religião cristã, suprimiu o resto. E até as palavras: ao deus ignoto, que formam o texto do seu discurso, bem se vê que não foram citadas com fidelidade. Os teólogos modernos mostram ter aproveitado bastante esse exemplo, pois freqüentemente, da passagem de um autor costumam tirar cinco ou seis palavras e alterar-lhes o sentido, como lhes convém. E assim é que, ao se confrontar a cópia com o original, ou quando se compara a citação com o desenvolvimento do raciocínio, fica patenteado que o autor citado não teve a intenção de dizer o que se pretende, ou então disse justamente o contrário. Pois é o que fazem os nossos mestres, e o fazem com tão feliz impudência que os próprios legistas, que tanto se divertem em citar a torto e a direito, ficam com muita inveja deles.
E como poderiam deixar de sair-se bem com essa astúcia os guerreiros espirituais? Tudo podem esperar depois do primeiro sucesso do grande teólogo de que há pouco vos falei. Oh! que bom! Estou com o nome na ponta da língua! Receio, porém, que me citem outra vez o provérbio grego do Asinus ad lyram.
Esse doutor, no evangelho de São Lucas, interpretou tão bem uma passagem, que o seu senso, como o de Jesus Cristo, desperta como o fogo com a água. Julgai-o, pois. Por ocasião de um extremo perigo, ocasião em que os bons clientes mais assiduamente se acham em torno dos seus protetores, oferecendo-lhes todo os seus serviços, o Salvador, querendo tornar os seus discípulos superiores à esperança de qualquer socorro humano, fez aos mesmos a seguinte pergunta: — “Quando vos enviei pelo mundo, faltou-vos alguma coisa?” — Eles não tinham nem dinheiro para a viagem, nem sapatos para garantir-se contra as pedras e os espinhos, nem alforges a que pudessem recorrer em caso de fome. Como os apóstolos lhe respondessem que tinham sempre encontrado o necessário, o Salvador acrescentou: — “Agora, aquele de vós que tiver um saco, pequeno ou grande, deve deixá-lo; e aquele que não tiver espada, venda a túnica para comprá-la”. Como toda a doutrina evangélica aconselha a mansidão, a tolerância e o desprezo pela vida, seria preciso ser cego para não perceber o sentido e a intenção de Cristo nessa passagem, O divino legislador queria preparar os seus convidados para o ministério do apostolado e, por isso, impunha-lhes que se destacassem de todas as coisas desta terra. Não bastava largar os sapatos e os alforges. Eles deviam ainda despojar-se dos hábitos, o que significa, sem dúvida, o perfeito desprendimento de coração com que deviam entrar na carreira do apostolado.
É verdade que Jesus Cristo mandou que os apóstolos arranjassem uma espada, mas não das que servem de instrumento fatal nas mãos dos ladrões e dos parricidas, e sim de uma espada espiritual que penetrasse até ao fundo do coração, que extirpasse todas as paixões mundanas, a fim de que só a piedade reinasse e dominasse no ânimo. Observai agora, por favor, como o nosso célebre Asinus ad lyram esticou o sentido dessa passagem: por espada, entende ele o direito de defesa contra a perseguição; por alforges, entende a provisão de víveres, como se o Salvador, tendo percebido que sem essa medida não atenderia bastante ao esplendor e à dignidade dos seu missionários, tivesse mudado de parecer e se retratado da sua determinação.
Não se recordava o nosso legislador da sua moral? Pois declarou formalmente aos seus discípulos que seriam beatos se sofressem pacientemente a infâmia, os ultrajes, os suplícios; disse-lhes que a verdadeira felicidade era reservada aos brandos de coração, e não aos soberbos; exortou-os, enfim, com o exemplo dos pássaros e dos lírios, a se abandonarem à Providência. Esquecera-se, então, o Salvador dessas suas máximas quando, por um espírito inteiramente oposto, mandou que os apóstolos trouxessem uma espada, vendessem o hábito para comprar uma, e preferissem andar nus a andar desarmados? Assim como o nosso sutil comentador encerra na espada tudo o que pode servir para repelir a força, assim também entende por alforges tudo o que diz respeito à comodidade da vida. Dessa forma, esse intérprete do espírito de Deus faz com que os apóstolos apareçam no teatro do mundo, para pregar Jesus crucificado, todos armados de lanças, balistas, fundas e bombardas. E assim também, para não viajarem em jejum, carrega-os de dinheiro, malas e embrulhos.
Mas, porque Jesus Cristo, depois de ter mandado que os seus discípulos vendessem a própria camisa (por honestidade, creio que foi só) para comprar uma espada, ordenou em seguida, com ar de severidade e desdém, que a pusessem na bainha? Porque os apóstolos, ao que saibamos, nunca desembainharam a espada contra a violência dos tiranos? Seriam obrigados a fazê-lo, em sã consciência, se Cristo expressamente o tivesse determinado. O nosso teólogo, porém, não se atrapalhou diante dessa dificuldade.
Um outro doutor, cujo nome discretamente deixo de citar, deu o mais belo salto do mundo. O profeta Abacuc disse: “As peles da terra de Madian serão revolvidas”. Ora, é claro como o sol que o profeta quer referir-se às tendas dos mandianitas; mas, firmando-se o bom teólogo no termo peles, disse que a referida passagem era, sem dúvida alguma, uma alusão ao esfolamento de São Bartolomeu.
Não faz muito que intervim numa discussão teológica, pois quase nunca falto a esse gênero de combate. Tendo alguém perguntado como se poderia provar, com as sagradas escrituras, que contra os herejes deviam ser empregados o ferro e o fogo, em lugar da discussão e do raciocínio, logo se levantou um velho, cujo aspecto severo e temerário facilmente indicava tratar-se de um teólogo, e, franzindo as sobrancelhas, respondeu com uma voz altisonante: “Foi o próprio São Paulo que fez esta sábia lei: Evita (devita) o herege depois de uma ou duas admoestações”. Como fosse repetindo muitas vezes e em voz alta essas palavras, todos o julgaram dominado por um acesso frenético. Mas, ele acabou explicando o enigma: “Sereis — exclamou — tão ignorantes que não noteis que esse vocábulo devita (evita), é formado, em latim, pela preposição de, mais o nome substantivo vita, significando fora da vida? Portanto, São Paulo mandou queimar os hereges e jogar suas cinzas ao vento”.
Alguns puseram-se a rir ante tão nova e inesperada etimologia, mas outros acharam-na profunda e verdadeiramente teológica. Percebendo o barbado que não eram por ele todos os sufrágios da assembléia, lançou mão do argumento decisivo: “Está escrito, — disse ele, — está escrito: Não permitirás que viva o malfeitor; ora, o herege é malfeitor, por conseguinte, etc.”. Então, todos admiraram o talento do doutor, e o seu juízo por conseguinte é universalmente aplaudido. Não passa pela cabeça de ninguém que a citada lei dizesse respeito unicamente aos feiticeiros, aos bruxos, aos magos e a todas as pessoas que os hebreus chamavam de malfeitores, porque, do contrário, seria preciso ainda condenar ao fogo a embriaguez e a fornicação. Mas, é uma tolice perder-me em semelhantes frioleiras, cujo número é tão grande que nem Dídimo nem Crisipo disseram tantas, embora tenham publicado uma enorme quantidade de volumes, o primeiro tratando da dialética e o segundo da gramática.
Apenas vos peço que me façais justiça numa coisa: se é permitido que esses divinos mestres se afastem tanto do bom senso e da verdade, não condenais, com mais forte razão, a minha insensatez nas citações, pois não passo, afinal, de uma sombra em confronto com os teólogos.
Volto de novo a São Paulo. Falando de si mesmo, diz esse apóstolo: Suportai pacientemente os tolos... Considerai-me também um tolo... Não falo segundo Deus, mas como se fosse tolo... Somos tolos por Jesus Cristo. Que glória para mim é o fato de um autor de tanto peso referir-se tão favoravelmente à Loucura! No entanto, o mesmo São Paulo, não contente com isso, passa a recomendar a loucura como coisa sumamente necessária à salvação. Aquele, dentre vós, — diz ele, — que quiser parecer sábio, deve tomar-se louco, para poder fazer-se sábio. Não chamou Jesus Cristo loucos, em São Lucas, àqueles dois discípulos com os quais se encontrou na estrada, depois da resurreição? Não obstante, isso não me causa tanta surpresa como o que disse o apóstolo das gentes: A loucura de Deus é melhor que a loucura dos homens. Ora, de acordo com a interpretação de Orígenes, não se pode aplicar essa loucura à opinião dos homens. Do mesmo gênero é esta passagem: O mistério da cruz é uma loucura para os que perecem.
Mas, porque hei de me cansar invocando tantos testemunhos? O homem-Deus, voltando-se para o seu Pai, já lhe disse nos salmos: Conheces minha loucura? Não é, pois, sem motivo, ou melhor é visivelmente por essa razão que os loucos são os prediletos de Deus. Nesse particular, o Ser Supremo assemelha-se aos príncipes da terra, pois que, em geral, essas divindades imortais não gostam nada das pessoas sensatas e honestas. Com efeito, César temia mais Cássio e Bruto do que ao glutoníssimo Antônio (101); Nero não podia tolerar Sêneca (102); Platão disiludiu-se com Dionísio, o tirano (103). No entanto, apreciaram muito os estúpidos, os simples e os imbecis.
O Homem-Deus, igualmente, condena sempre e detesta os sábios que só confiam na própria filosofia. São Paulo disse nítida e claramente: Deus escolheu tudo o que há de tolo no mundo... Deus julgou conveniente salvar o mundo da loucura. E assim o fez, decerto, porque não teria podido fazê-lo com a sabedoria.
O próprio Deus diz pela boca do profeta Isaías: Eu confundirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes. E a humanidade de Jesus não dá graças a Deus por ter ocultado aos sábios o mistério da salvação, para revelá-lo aos pequenos, isto é, aos maluquinhos, com toda a força e energia do vocábulo grego? Pela mesma razão, podemos explicar ainda a contínua guerra que, segundo o evangelho, fez o Salvador aos doutores da lei, aos escribas e aos fariseus, ao mesmo tempo que tomava o partido do vulgo ignorante. Desgraçados de vós, — dizia ele, — oh escribas e fariseus! Não significará essa imprecação o mesmo que desgraçados de vós, oh sábios? Finalmente, o Senhor do universo só costumava conversar com os meninos, as mulheres e os pescadores. Também Jesus Cristo preferia, entre tantas espécies de animais, os que mais se afastavam da sagacidade da raposa: escolheu um burrinho para o seu carro de triunfo, quanto teria podido cavalgar um soberbo leão. O Espírito Santo desceu sobre a segunda pessoa da Santíssima Trindade, não em forma de águia ou de gavião, mas de pomba, que é o mais simples dos pássaros. Além disso, as sagradas escrituras falam freqüentemente de animais que têm um instinto muito limitado, que são os veados, os enhos e os cordeiros. E não é de ovelhas que Jesus Cristo chama os que são eleitos para gozar com ele do reino dos céus? Ora, onde haverá animal mais estúpido do que a ovelha? Antigamente, por desprezo e injúria, costumava-se dar esse nome às pessoas estúpidas e idiotas. Ainda mais: em virtude da comparação dos eleitos com as ovelhas, Jesus Cristo vangloria-se do título de pastor e gosta muitíssimo do nome de Cordeiro. De fato, é com esse nome que São João Batista o faz conhecer, quando diz: Eis o Cordeiro de Deus! E sob essa forma é ele igualmente representado em diversas visões do Apocalipse.
Mas, quais são as nossas conclusões do que aqui fica dito? Ei-las:
Os homens são malucos, sem excetuar mesmo os que fazem profissão de piedade. Jesus Cristo, que é a sabedoria do Pai, procede como tolo ao unir-se à natureza humana da forma por que o fez, isto é, tornando-se pecador para redimir o pecado. Observai como o Salvador executou dignamente o seu projeto. Tendo estabelecido, em seus decretos, que salvaria os homens com a loucura da cruz, utilizou nessa tarefa apóstolos grosseiros e idiotas, recomendando-lhes calorosamente que evitassem a sabedoria e seguissem a loucura, e indicando-lhes o exemplo dos meninos, das gralhas, e dos pássaros, seres sem nenhum artifício e sem inquietações que só se orientam pelas leis da natureza e pelo mecanismo do instinto.
Esse legislador proibiu-lhes que se preparassem para comparecer perante os tribunais dos reis e os presídios, e não quis que pensassem no dia seguinte nem observassem a medida do tempo, com receio de que, fiando-se na própria sabedoria, se abandonassem inteiramente à sua providência. E foi por essa razão que o grande Arquiteto do universo proibiu que o primeiro e lindo par de esposos, por ele feitos e unidos em matrimônio, provassem o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, sob pena de sua desgraça e morte. É a melhor prova de que a ciência é o veneno da felicidade. São Paulo rejeita-a como perniciosa, ao dizer que ensoberbece o coração, e creio que São Bernardo exprimiu o mesmo sentimento desse apóstolo, ao chamar monte do saber àquele monte no qual o soberbo Lúcifer fixou sua morada.
Não me parece que deva silenciar sobre o sumo crédito de que gozo no céu, pois que aí facilmente se obtém o perdão com o meu nome, ao passo que não é favorável o da sabedoria. Pecou um homem com conhecimento de causa? Não penseis que procure alegar suas luzes, pois pode considerar-se feliz quando pode cobrir-se com o manto da loucura. É por isso que Adão, no livro XII dos Números, se não me engano, querendo implorar o perdão para si e para a sua mulher, exclama: Rogo-vos, Senhor, que não nos condeneis por esse pecado que tolamente cometemos! O mesmo fez Saul, para desculpar-se com Davi. Logo se vê — diz ele — que agi como louco! O próprio Davi procurando evitar a vingança divina, exclamou: Senhor! Suplico-vos que canceleis a iniqüidade da partida do vosso servo, pois agimos como loucos! Bem vedes que não podia esperar ser favorecido, se não aduzisse como desculpa a sua tolice e a sua ignorância.
Mas, de todas as provas, a que corta a cabeça do touro é a prece do Salvador na cruz pelos seus crucificadores: — Perdoai-lhes, Pai, — disse ele, e o Deus moribundo não aduziu em favor deles outra desculpa senão a da loucura, acrescentando: porque não sabem o que fazem. Disse São Paulo a Timóteo: Deus usou de misericórdia para comigo porque a minha incredulidade era efeito da minha ignorância. Mas, que significa essa ignorância? Não significará mais estultice do que malícia? Qual é o sentido destas palavras: Deus usou de misericórdia para comigo porque, etc? Não será, talvez, o de demonstrar claramente que, sem o crédito e a recomendação da loucura, São Paulo não teria obtido nenhuma misericórdia?
O místico salmista mostrou-se, igualmente, da minha opinião naquela passagem que eu me esqueci de pôr no seu lugar: Dignai-vos Senhor, esquecer os delitos da minha juventude e das minhas ignorâncias. Refletistes bem sobre esse divino cantor? Escusa-se por dois títulos: um, pela juventude, idade de que sou a fiel e inseparável companheira; outro, pela ignorância, e notai que exprime a sua ignorância no plural, o que mostra a força imensa da sua loucura.
Para terminar logo uma enumeração que por natureza não acabaria nunca, quero vos fazer ver, sucintamente, que a religião cristã se coaduna perfeitamente com a loucura e não tem a menor relação com a sabedoria. Como essa proposição pareça um verdadeiro paradoxo, não serei tão irrazoável que pretenda me acrediteis baseados apenas em minha boa fé. Vamos, pois, às provas.
Em primeiro lugar, vemos os que, com maior solicitude, intervém nos sacrifícios e outras cerimônias do culto, não são as pessoas mais sensatas, mas os meninos, os velhos as mulheres e os ignorantes. E de onde lhes vêm o desejo de se aproximarem tanto do altar e o transporte que experimentam pela devoção? Vêm de um impulso totalmente mecânico da natureza. Em segundo lugar, os fundadores da religião cristã, fazendo profissão de uma maravilhosa simplicidade, eram os inimigos mais declarados do estudo das ciências. Finalmente, é impossível achar loucos mais extravagantes que os que se abandonam inteiramente ao ardor da piedade cristã. Jogam fora o dinheiro como a água, desprezam as injúrias, deixam-se enganar, não vêem nenhuma diferença entre os amigos e os inimigos, sentem horror pela volúpia: a abstinência, as vigílias, as lágrimas, os padecimentos, os ultrajes, eis todas as suas delícias; além disso, odeiam a vida e desejam a morte, ao ponto de parecerem absolutamente privados de senso comum, não passando de corpos sem alma e sem sentimento. Que nome lhes daremos, se o de loucos não lhes fica bom? Não devemos, pois, estranhar que os judeus tenham considerado os apóstolos como borrachos. O juiz Festo não teria razão ao tomar São Paulo por um extravagante.
Uma vez que, sem o perceber, me arvorei em sábia e em raciocinadora, quero ir até ao fim do assunto. Coragem, meu belíssimo espírito! Sustentemos, diante desses ouvintes, diante dessa ilustre sociedade de loucos, uma tese inteiramente nova e inesperada. Sim, meus caros senhores, quero mostrar-vos que a felicidade dos cristãos, essa felicidade almejada com tantas penas e tantos trabalhos, não é senão uma espécie de loucura e de furor. Como! vós me olhais de soslaio e com desdém? Devagar, devagar: não nos apeguemos às palavras, que não passam de sons articulados e arbitrários. Limitemo-nos ao exame da coisa. Entro no assunto.
O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha aquela dos platônicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da máquina orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. É por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam nossa alma das coisas visíveis e corporais. Por isso, quando a alma emprega os órgãos do corpo de acordo com a economia natural, costuma dizer-se sábia e sã; mas, quando, rompendo os liames, procura fugir do cárcere, pôr-se em liberdade, então se diz em estado de loucura. Quando essa desordem provém de enfermidade ou alteração dos órgãos, dão-lhe todos o nome de furor. Por outro lado, vemos esses felicíssimos loucos que predizem o futuro, que conhecem línguas e ciências sem nunca as terem aprendido, e que mostram ter em si mesmos algo de divino. E de onde provém esse prodígio? Creio não haver dúvida de que provém da alma, que, tornando-se um pouco mais livre da servidão do corpo, começa a utilizar sua força natural.
Creio provir igualmente dessa causa a faculdade que têm os moribundos de dizer coisas prodigiosas, como que inspirados. O amor e o zelo da piedade produzem também essa alienação dos sentidos, que não parece ser, é verdade, o mesmo gênero de loucura, mas desta se aproxima de tal forma que em geral se lhe dá o mesmo nome.
Com efeito, quem não trataria como loucos, e como loucos em último grau, aqueles homenzinhos que levam uma vida totalmente diversa da dos outros mortais? E aqui vem muito a propósito a idéia de Platão. Imaginou ele uma caverna repleta de pessoas presas, da qual conseguiu fugir um dos prisioneiros. Este, depois de levar muito tempo vagando sem destino, voltou e gritou em altas vozes aos companheiros: — Meus caros amigos! Como me inspirais piedade! Só vedes sombras e fantasmas, em suma, sois verdadeiramente tolos. Bem diversa é a minha situação, pois só vi coisas sensíveis existentes, reais. — Então, do seu canto, os encarcerados, que nunca mais saíram do subterrâneo, entreolhando-se com surpresa, exclamaram: — Que nos quer dizer com isso esse louco? Com certeza perdeu o juízo. — O mesmo costuma suceder com homens: os mais sensuais têm maior admiração pelas coisas materiais, quase acreditando que não existam outras; os que se consagram à piedade, ao contrário, quanto mais relação com o corpo tem um objeto, tanto menos lhe dão valor e passam a vida sempre imersos na contemplação das coisas invisíveis.
A principal ocupação dos mundanos é acumular sempre riquezas e contentar em tudo e por tudo o próprio corpo, pouco ou nada se importando com a alma, cuja existência, por ser ela invisível, muitos chegam mesmo a pôr em dúvida. Já as pessoas inflamadas pelo fogo da religião seguem um caminho totalmente oposto e depositam toda a sua confiança em Deus, que é o mais simples de todos os seres: depois dele e dependendo dele, pensam na alma, como sendo a coisa que mais próxima está às divindades. É assim que não pensam no corpo e não só desprezam os bens da fortuna como até os recusam. E quando, por dever, são obrigados, como pais de família, a pensar nos interesses temporais, por aí enveredam contra a vontade e experimentam um vivo pesar, porque têm como se não tivessem e possuem como se não possuíssem.
Existem ainda muitos outros graus de diferença entre os que se ocupam somente com o corpo e os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma. Para melhor distinguirmos esses graus, estabeleçamos um princípio incontestável.
Embora todos os sentimentos da alma tenham uma correspondência necessária com o corpo, há contudo duas espécies: uns são materiais, como o tato, a audição, a vista, o olfato e o paladar; outros têm menor relação com os órgãos, como sejam a memória, o intelecto e a vontade. Disso resulta que a alma tem maior ou menor forca à proporção que se aplica mais ou menos a esses diversos sentimentos. Raciocinemos, agora, sobre essa suposição. Assim como os que se abandonam totalmente à piedade se tornam o quanto podem superiores aos sentidos do corpo, mortificando-o a tal ponto que acabam perdendo toda sensibilidade, — como São Bernardo, por exemplo, que, segundo a lenda, bebia óleo por vinho sem perceber, — assim também os sensuais têm um grande vigor de ânimo pelos sentidos do corpo e uma fraqueza extrema pelos da alma. Além disso, há algumas paixões que afetam o corpo mais de perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a soberbia, a inveja, contra as quais movem os verdadeiros devotos, se é que os há, uma perpétua guerra, ao passo que os adeptos da natureza acham que não podem viver sem essas coisas. Existem ainda outras que têm um lugar intermédio e são consideradas naturais, como sejam: amar a pátria, os parentes, os filhos diletos, os vizinhos, os amigos. Quase todos os homens possuem algo dessas paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para extirpá-las do coração ou ao menos espiritualizá-las. Um filho, por exemplo, ama seu pai: julgais que ele honre a paternidade e ame de fato aquele de quem recebeu a vida? — Ora essa! Que foi que me deu meu pai, — diz o devoto, — a não ser esse corpo miserável, que é o meu pior inimigo? Aliás, também isso eu o devo a Deus, único e verdadeiro autor do meu ser. Amo meu pai como um homem em quem resplende a imagem daquela suprema inteligência que é o bem supremo e fora da qual nada existe de amável nem de desejável. — É também com essa regra que as pessoas de mortificação misturam todos os deveres da vida, de modo que, quando não desprezam em geral todas as coisas visíveis, pelo menos as põem infinitivamente abaixo das invisíveis.
Chegam mesmo a dizer que, nos sacramentos e nas outras funções do culto, não existiria a matéria sem o espírito. Nos dias de jejum, acreditam que seja quase nada a abstinência das carnes e da ceia, se bem que a maioria faça consistir nesses dois pontos toda a obrigação do preceito. Os devotos vos dizem que é preciso jejuar com o espírito, dominar as próprias paixões, suprimir a cólera e o orgulho, a fim de que a alma, mais desembaraçada da massa do corpo, possa melhor gozar dos bens do céu. O mesmo acontece em relação à missa: — Se bem que não desprezemos — dizem eles — tudo o que é visível nesse sacrifício, todavia, os sinais não seriam menos inúteis que as cerimônias, quando não perniciosos, se não fosse o socorro do espirito. — Representando esse mistério a paixão do Salvador, faz-se mister que a representem também os fiéis, dominando, extinguindo e sepultando suas paixões, a fim de ressurgirem numa nova vida e se unirem a Cristo e aos seus membros. Os devotos costumam assistir à santa misa com a referida diposição, mas o mesmo não acontece com a maior parte dos homens, que, não reconhecendo nesse sacrifício senão a obrigação de comparecer, contentam-se em olhar, ouvir, prestar atenção ao canto e às cerimônias. Mas, não é só no que diz respeito às coisas que acabo de vos referir a título de exemplo que os anjos mortais rompem toda relação com os corpos e com a matéria: para se elevarem aos bens eternos, e invisíveis e espirituais, fazem o mesmo com tudo o que acontece no curso da vida.
Vós mesmos não podereis negar, quando eu vo-lo tiver brevemente demonstrado, que a infinita recompensa desejada que buscam com tanta ansiedade não é senão uma espécie de furor, Confirmo o meu sentimento com um oráculo do divino Platão: O furor dos amantes — diz o entusiasta filósofo — é de todos o mais feliz. Com efeito, um amante apaixonado não vive mais em si mesmo, mas na pessoa que se apoderou do seu coração, e, quanto mais sai de si mesmo para transfundir-se no objeto do seu amor, tanto mais sente redobrar-se o seu prazer. Não teremos igualmente razão de qualificar com o nome de furor o próprio estado de uma alma devota que arde de desejo por alcançar a perfeição evangélica e que não procura senão sair do seu corpo pelo desprezo dos sentidos? Trazei à vossa memória os modos de dizer freqüentemente usados: Está fora de si... Voltou a si... Caiu em si... Além disso, segundo a idéia de Platão, pelo grau de amor é preciso medir a grandeza do furor e da felicidade. Qual será, pois, a vida dos beatos no paraíso, vida pela qual suspiram as almas devotas com tanto transporte? Como, naquele estado de gozo perfeito e sempre novo, a alma vitoriosa e triunfante absorverá o corpo, resulta que esse absoluto domínio, bem longe de causar o menor sofrimento, torna-se natural, e o espírito se achará como no seu reino e gozará o fruto dos esforços feitos para reduzir o corpo a uma perfeita escravidão. Além disso, a alma verá de maneira incompreensível, como que absorta naquela suprema inteligência por que é infinitamente superada. E assim é que o homem ficará fora de si e não será feliz senão quando, não se achando mais em si mesmo, receber uma inexprimível felicidade daquele supremo Bem que tudo atrai a si. Mas, como essa felicidade só pode ser destruída pela união da alma com o corpo, e sendo a vida dos santos na terra uma contínua meditação e uma sombra das alegrias inefáveis do paraíso, resulta que principiam a gozar antecipadamente, neste mundo, a recompensa que lhes é prometida. É bem verdade que, em confronto com a felicidade eterna, não passa de uma gota e de uma sombra a que experimentam os devotos nesta terra. Não obstante, essa gota, essa sombra é incomparavelmente superior a todos os prazeres dos sentidos, mesmo que se pudessem gozar todos ao mesmo tempo, porque todas as coisas espirituais superam infinitamente as materiais e os bens invisíveis ultrapassam de muito os visíveis. É, aliás, o que promete um profeta, quando diz: Os olhos não viram, os ouvidos não escutaram, o coração do homem não sentiu ainda o que Deus preparou para os que o amam. É esse gênero de loucura que, bem longe de se perder quando se passa da terra ao céu, alcança, ao contrário, seu último grau de perfeição.
Para vos falar novamente daqueles aos quais Deus, por um favor todo especial, concede a graça de gozar antecipadamente as delícias da beatitude dir-vos-ei que são eles em número muito reduzido e que, além disso, estão sujeitos a certos sintomas que muito se assemelham aos da loucura: suas palavras são desconexas e fora do uso humano, ou, mais claramente, não sabem o que dizem; sua fisionomia transforma-se a cada momento, e ora estão alegres, ora melancólicos; choram, riem, suspiram, numa palavra, estão inteiramente fora de si. Acontece que voltam os seus sentimentos? Protestam que positivamente não sabem de onde vêm nem se existem somente na alma ou também no corpo, nem se estarão acordados ou dormindo. E de tudo depois que viram, ouviram, disseram, ou não se recordam ou fazem uma idéia tão confusa como se tivessem sonhado.
Só sabem de uma coisa: que se acham felicíssimos no seu delírio. Eis porque sofrem a convalescença do cérebro e tudo sacrificariam de bom grado para serem perpetuamente loucos nessas condições. No entanto, toda essa felicidade não passa de uma tenuíssima migalha da mesa celeste: imaginai, agora, o que não será o eterno banquete!
Mas parece que, sem refletir no que sou, vou ultrapassando há bastante tempo todos os limites. Por conseguinte, se tagarelei demais e com demasiada ousadia, lembrai-vos de que sou mulher e sou a Loucura. Ao mesmo tempo, porém, não vos esqueçais deste antigo provérbio dos gregos: Muitas vezes, também o homem louco fala judiciosamente. E não ser que pretendais que, nesse provérbio, não estejam incluídas as mulheres, pois eu disse homem e não mulher.
Esperais um epílogo do que vos disse até agora? Estou lendo isso em vossas fisionomias. Mas, sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter de memória toda essa mistura de palavras que vos impingi. Em lugar de um epílogo quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo. E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais.
E, por isso, sedes sãos, aplaudi, vivei, bebei, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura.
Antes de mais nada, não se pode pôr em dúvida o conhecido provérbio que diz: Quando falta uma coisa, é preciso representá-la, o que é inteiramente confirmado por esta sentença que se costuma ensinar até aos meninos: Procura-se muita sabedoria para se poder passar por louco. Julgai, pois, se a loucura deve ou não ser incluída entre os maiores bens, quando os próprios sábios tributavam louvores à sua imagem e à sua sombra falaz. Mas, Horácio, que a si mesmo se chama o lúcido e bem nutrido porco de Epicuro, exprime a coisa com maior naturalidade, quando aconselha a temperar a loucura com a sabedoria. Ele desejaria, é certo, que essa loucura fosse de curta duração, mas, a esse respeito, revela, a meu ver, pouco critério. O mesmo poeta diz nas suas Odes: É um grande prazer ser louco quando se deseja sê-lo. Em outro lugar, diz preferir parecer estranho e ignorante a parecer sábio e furioso. Homero, que por toda a parte louva muitíssimo o seu Telêmaco, não deixa de o chamar várias vezes de menino tolo; e os trágicos gostam de dar aos jovens o epíteto de tolo e imprudente, como um epíteto de bom augúrio. Qual é o argumento da divina Ilíada? Não serão, talvez, os furores e as loucuras dos reis e dos povos? Cícero nunca se orientou tão bem, por mim, como quando disse: Todas as coisas estão cheias de loucura. Ora, convireis que, quanto mais extenso é um bem tanto mais excelente é ele.
Mas, é possível que os autores citados tenham pouca autoridade para os cristãos. Pois bem: apoiarei, se julgais conveniente, ou, para exprimir-me teologicamente, fundarei o meu elogio no testemunho das sagradas escrituras. Permiti que o faça, senhores nossos mestres, é o que vos peço humildemente. A empresa é bastante difícil e exigiria pelo menos uma boa invocação às musas; mas, por outro lado, seria uma indiscrição fazer descer pela segunda vez, do monte Helicão, essas nove virgenzinhas, pois bem vedes que o caminho é muito longo. Além disso, a matéria que devo abordar nada tem que ver com Apolo. Portanto, seria melhor que, dispondo-me eu a me arvorar em teóloga e a correr sobre os espinhos teologais, se dignasse o espírito de Scot a passar da sua Sorbonne para o meu ânimo. Ah! queira Deus que esse beato espírito, mais pungente que o ouriço e mais agudo que o porco-espinho, inflame a minha mente! Depois, quando eu tiver acabado, que voe por onde mais lhe agradar, inclusive entre os corvos. Praza igualmente aos céus que me seja permitido mudar de aspecto, vestindo um hábito teologal! Vou, porém, experimentar, e, quando me ouvirdes impingir tanta teologia, não suspeiteis que eu tenha forçado e espoliado as arcas dos nossos mestres. Mas, afinal, não me parece surpreendente que, tendo mantido por tantos séculos uma estreita amizade com os teólogos, tenha eu sido atacada por um pouquinho da sua sublime ciência. E porque não poderia acontecer-me tal coisa? Não será, talvez, verdade que até o irrequieto Príapo, embora sendo um deus de curto entendimento, ao escutar o mestre ler grego em voz alta, guardou algumas palavras na memória e as reteve como um doutor? E que diríamos do galo de Luciano? Como se sabe, depois de ter vivido longo tempo com os homens, articulou inesperadamente a lingua e falou como eles. Mas, dito isso, comecemos sob os auspícios da Fortuna.
O Eclesiastes, capítulo primeiro, versículo... versículo... esperai um pouco... oh! meu Deus! não me recordo mais, e assim também a página, a linha, etc. (pois que, para citar teologicamente, é preciso dizer tudo). Mas, no Eclesiastes está escrito que o número dos loucos é infinito. Ora esse número infinito não abrangerá a todos os homens, com poucas exceções, se é que já houve alguns? Mais ingenuamente, porém, o confessa Jeremias: Todos os homens — diz ele no capítulo X — tornaram-se loucos à força de sabedoria. E atribui a sabedoria somente a Deus, deixando aos homens a loucura como predicado. Um pouco antes, diz ele: O homem não deve gabar-se da sua sabedoria. Mas, porque dizeis isso, oh santo, oh divino oráculo do futuro? É porque (assim me parece ouvi-lo responder) o homem não tem nenhuma idéia da sabedoria. Voltemos ao Eclesiastes. Quando Salomão, esse grande monarca iluminado do céu, faz aquela patética exclamação moral: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade! — não vedes, senhores, que, sem gaguejar, ele declara que a vida humana, como também eu já vos disse tantas vezes, não é outra coisa senão um divertimento da Loucura? E não foi também isso o que Cícero, com grande honra para mim, repetiu muito depois, isto é, que tudo está cheio de loucura? E quando o citado Eclesiastes diz ainda que o louco muda como a lua e o sábio é estável como o sol, — que imaginais que isso signifique? Não significará, talvez, que todos os homens são loucos e que somente a Deus pertence o título de sábio? Com efeito, por lua entendem os intérpretes a natureza humana, e por sol a fonte da verdadeira luz, que é Deus. Também o Salvador apoia essa verdade quando diz, no Evangelho, que o epíteto de bom só cabe a Deus. Ora, segundo os estóicos, sábio e bom são dois sinônimos; portanto, todos os homens, sendo maus, são também, por uma conseqüência necessária, todos malucos.
Diz ainda Salomão no capítulo XV: A tolice é a alegria do tolo, o que significa que, sem a loucura, nada se acha de agradável na vida. E em outra passagem: Progredir na ciência é o mesmo que progredir na dor, e, onde há muito sentimento, há também muita contrariedade. Não repetirá esse mesmo excelente pregador, no capítulo VII, o mesmo pensamento? — A tristeza — diz ele — mora no coração do sábio, e a alegria no do tolo. Não contente de ter conhecido a fundo a sabedoria, teve ele o desejo de conhecer também a mim. Pensais que eu esteja gracejando? Ouvi o oráculo, capitulo I: Apliquei-me ao conhecimento da prudência e da doutrina, dos erros e da loucura. É preciso notar que, nessa passagem, sou citada em último lugar, a fim de me ser conferida a honra que mereço, como posso prová-lo. De fato, foi o Eclesiastes que o escreveu: ora, na ordem eclesiástica, segundo o cerimonial em uso, o primeiro em dignidade é o que ocupa o último posto, de acordo com o preceito de Cristo.
Que a loucura é realmente superior em dignidade à sabedoria prova-o, à evidência, o autor do Eclesiastes, seja ele quem for, no capitulo XLIV. Mas, meus caros ouvintes, antes de citar essa passagem, quero fazer um pacto convosco: juro-vos por Hércules que nunca mais vos falarei disso, se não responderdes favoravelmente às minhas perguntas, a exemplo daqueles que, segundo Platão, discutiam com Sócrates. Dou, pois, início à minha indução.
Dizei-me, por favor, o que será melhor ocultar: as coisas raras e preciosas, ou as vis e triviais. Como, não respondeis? Porque permaneceis imóveis como se não passásseis de estátuas? Mas, não será o vosso silêncio que me fechará a boca. Os gregos responderão por vós e dirão que a bilha se deixa sem receio à porta, ao passo que as coisas preciosas se conservam escondidas. Receando, porém, que profaneis essa sentença, rejeitando-a, acho conveniente advertir-vos que é de Aristóteles, o deus dos nossos mestres. Continuemos: haverá aqui alguém bastante louco que, de bom grado, seja capaz de abandonar na rua o seu dinheiro e as suas jóias? Não o creio, naturalmente! Todos vós, ao contrário, me pareceis, se não me engano, desses homens que costumam ocultar muito bem tudo o que possuem de precioso e que só se descuidam das coisas que pouco ou nada importa perder. Assim, pois, exigindo a prudência que se escondam as coisas de valor e que não se deixem expostas senão as coisas de pouca valia, a minha causa venceu, triunfou! O Eclesiastes ordena que se manifeste a sabedoria e se oculte a loucura. Textualmente: O homem que esconde a própria loucura é melhor que o que esconde a própria sabedoria. Mas, isso não basta. As sagradas escrituras atribuem ainda ao louco a candura de ânimo, da qual não é suscetível o sábio, embora se julgue sempre melhor do que os outros. É, pelo menos, como interpreto a seguinte passagem do Eclesiastes, capítulo X: Ao passear, o louco supõe que todos os que encontra sejam loucos como ele. Quem pode deixar de admirar essa candura e essa sinceridade? Naturalmente, todos os homens fazem um alto conceito de si mesmos, mas a loucura torna o homem tão humilde que procura dividir a sua virtude com todos os outros homens e comunicar-lhes a glória do seu mérito. Salomão julgava ter chegado a tanta perfeição, dizendo no capítulo XXX: Eu sou o mais louco de todos os homens. São Paulo, esse evangelista, esse apóstolo das gentes, não passou sem atribuir-se o meu nome, pois disse aos coríntios: Como louco, eu afirmo que sou o maior de todos (de tal maneira considerava ele vergonhoso ser superado em loucura). Mas, enquanto isso, insurgem-se contra mim certos teólogos grecistas, impingindo como novidades coisas rançosas e antigas e se esforçando por cegar o vulgo com anotações que, além do mais, são pensamentos roubados aqui e ali: entre eles, encontra-se, se não em primeiro, pelo menos em segundo lugar o meu caro Erasmo, que freqüentemente cito para lhe prestar uma homenagem (98). — Oh Loucura! — exclamam eles, — tu te mostras verdadeiramente digna do teu nome, tanto em tuas interpretações como em tudo mais! O pensamento do apóstolo é bem diverso daquele que tu sonhas: não há a intenção de persuadir que ele seja mais louco que os outros; depois de ter dito que eles são ministros de Cristo e eu também o sou, como se não bastasse igualar-se aos outros, acrescenta, corrigindo-se: E o sou mais do que eles, sentindo-se não somente igual aos outros apóstolos no ministério do evangelho, mas ainda um tanto superior. Para evitar o escândalo que semelhante declaração poderia provocar, São Paulo chama-se louco, pois só os loucos têm o direito de dizer tudo sem risco de ofender alguém. Mas, seja qual for a interpretação que se dê ao que escreveu São Paulo, deixo que o discuta quem quiser. Quanto a mim, prefiro ser atacada pelos fogos desses grandes, desses enormes, desses gordos, desses célebres teologastros, com os quais a maior parte dos doutores prefere correr o risco de enganar-se a conhecer a verdade ocultada por esses séquito de pessoas de três línguas (99), às quais se dá tanta importância como às gralhas. Além disso, tenho em meu favor glorioso teólogo, que prudentemente julgo não dever nomear, pois sei muito bem que as nossas gralhas não deixariam de me citar a fábula do Asinus ad lyram (100). Esse doutor assim explica magistralmente, teologicamente, essa passagem: Eu o digo com menor sabedoria, eu o sou mais do que eles. Faz disso um novo capítulo — e assim é quem exige uma dialética consumada — que vos acrescenta uma nova secção. Eis, não só quanto à forma, mas também quanto ao fundo, as palavras do meu teólogo: Eu o digo com menor sabedoria, isto é, se vos pareço louco quando me igualo aos falsos apóstolos, mais tolo vos parecerei ainda se quiser preferir-me a eles. Depois, como que divagando, passa de repente a outro assunto.
Mas, como sou louca ao querer atormentar meu cérebro com a interpretação de um só teólogo! Pois não conquistaram os nossos teólogos o direito público de esticar o céu, isto é, as escrituras, como se fossem uma pele? Se devemos dar crédito ao douto São Jerônimo, que possuía cinco línguas, o próprio São Paulo usava do referido direito, encontrando-se em suas obras coisas que parecem opostas às sagradas escrituras. Por essa pia fraude do apóstolo das gentes, podemos julgar todas as outras. Tendo São Paulo observado, certa vez, uma inscrição que os atenienses tinham posto sobre um altar, na qual se lia: Aos deuses da Ásia, da Europa e da África, aos deuses ignotos e estranhos, — trancou a inscrição e, tomando somente a parte julgada vantajosa à religião cristã, suprimiu o resto. E até as palavras: ao deus ignoto, que formam o texto do seu discurso, bem se vê que não foram citadas com fidelidade. Os teólogos modernos mostram ter aproveitado bastante esse exemplo, pois freqüentemente, da passagem de um autor costumam tirar cinco ou seis palavras e alterar-lhes o sentido, como lhes convém. E assim é que, ao se confrontar a cópia com o original, ou quando se compara a citação com o desenvolvimento do raciocínio, fica patenteado que o autor citado não teve a intenção de dizer o que se pretende, ou então disse justamente o contrário. Pois é o que fazem os nossos mestres, e o fazem com tão feliz impudência que os próprios legistas, que tanto se divertem em citar a torto e a direito, ficam com muita inveja deles.
E como poderiam deixar de sair-se bem com essa astúcia os guerreiros espirituais? Tudo podem esperar depois do primeiro sucesso do grande teólogo de que há pouco vos falei. Oh! que bom! Estou com o nome na ponta da língua! Receio, porém, que me citem outra vez o provérbio grego do Asinus ad lyram.
Esse doutor, no evangelho de São Lucas, interpretou tão bem uma passagem, que o seu senso, como o de Jesus Cristo, desperta como o fogo com a água. Julgai-o, pois. Por ocasião de um extremo perigo, ocasião em que os bons clientes mais assiduamente se acham em torno dos seus protetores, oferecendo-lhes todo os seus serviços, o Salvador, querendo tornar os seus discípulos superiores à esperança de qualquer socorro humano, fez aos mesmos a seguinte pergunta: — “Quando vos enviei pelo mundo, faltou-vos alguma coisa?” — Eles não tinham nem dinheiro para a viagem, nem sapatos para garantir-se contra as pedras e os espinhos, nem alforges a que pudessem recorrer em caso de fome. Como os apóstolos lhe respondessem que tinham sempre encontrado o necessário, o Salvador acrescentou: — “Agora, aquele de vós que tiver um saco, pequeno ou grande, deve deixá-lo; e aquele que não tiver espada, venda a túnica para comprá-la”. Como toda a doutrina evangélica aconselha a mansidão, a tolerância e o desprezo pela vida, seria preciso ser cego para não perceber o sentido e a intenção de Cristo nessa passagem, O divino legislador queria preparar os seus convidados para o ministério do apostolado e, por isso, impunha-lhes que se destacassem de todas as coisas desta terra. Não bastava largar os sapatos e os alforges. Eles deviam ainda despojar-se dos hábitos, o que significa, sem dúvida, o perfeito desprendimento de coração com que deviam entrar na carreira do apostolado.
É verdade que Jesus Cristo mandou que os apóstolos arranjassem uma espada, mas não das que servem de instrumento fatal nas mãos dos ladrões e dos parricidas, e sim de uma espada espiritual que penetrasse até ao fundo do coração, que extirpasse todas as paixões mundanas, a fim de que só a piedade reinasse e dominasse no ânimo. Observai agora, por favor, como o nosso célebre Asinus ad lyram esticou o sentido dessa passagem: por espada, entende ele o direito de defesa contra a perseguição; por alforges, entende a provisão de víveres, como se o Salvador, tendo percebido que sem essa medida não atenderia bastante ao esplendor e à dignidade dos seu missionários, tivesse mudado de parecer e se retratado da sua determinação.
Não se recordava o nosso legislador da sua moral? Pois declarou formalmente aos seus discípulos que seriam beatos se sofressem pacientemente a infâmia, os ultrajes, os suplícios; disse-lhes que a verdadeira felicidade era reservada aos brandos de coração, e não aos soberbos; exortou-os, enfim, com o exemplo dos pássaros e dos lírios, a se abandonarem à Providência. Esquecera-se, então, o Salvador dessas suas máximas quando, por um espírito inteiramente oposto, mandou que os apóstolos trouxessem uma espada, vendessem o hábito para comprar uma, e preferissem andar nus a andar desarmados? Assim como o nosso sutil comentador encerra na espada tudo o que pode servir para repelir a força, assim também entende por alforges tudo o que diz respeito à comodidade da vida. Dessa forma, esse intérprete do espírito de Deus faz com que os apóstolos apareçam no teatro do mundo, para pregar Jesus crucificado, todos armados de lanças, balistas, fundas e bombardas. E assim também, para não viajarem em jejum, carrega-os de dinheiro, malas e embrulhos.
Mas, porque Jesus Cristo, depois de ter mandado que os seus discípulos vendessem a própria camisa (por honestidade, creio que foi só) para comprar uma espada, ordenou em seguida, com ar de severidade e desdém, que a pusessem na bainha? Porque os apóstolos, ao que saibamos, nunca desembainharam a espada contra a violência dos tiranos? Seriam obrigados a fazê-lo, em sã consciência, se Cristo expressamente o tivesse determinado. O nosso teólogo, porém, não se atrapalhou diante dessa dificuldade.
Um outro doutor, cujo nome discretamente deixo de citar, deu o mais belo salto do mundo. O profeta Abacuc disse: “As peles da terra de Madian serão revolvidas”. Ora, é claro como o sol que o profeta quer referir-se às tendas dos mandianitas; mas, firmando-se o bom teólogo no termo peles, disse que a referida passagem era, sem dúvida alguma, uma alusão ao esfolamento de São Bartolomeu.
Não faz muito que intervim numa discussão teológica, pois quase nunca falto a esse gênero de combate. Tendo alguém perguntado como se poderia provar, com as sagradas escrituras, que contra os herejes deviam ser empregados o ferro e o fogo, em lugar da discussão e do raciocínio, logo se levantou um velho, cujo aspecto severo e temerário facilmente indicava tratar-se de um teólogo, e, franzindo as sobrancelhas, respondeu com uma voz altisonante: “Foi o próprio São Paulo que fez esta sábia lei: Evita (devita) o herege depois de uma ou duas admoestações”. Como fosse repetindo muitas vezes e em voz alta essas palavras, todos o julgaram dominado por um acesso frenético. Mas, ele acabou explicando o enigma: “Sereis — exclamou — tão ignorantes que não noteis que esse vocábulo devita (evita), é formado, em latim, pela preposição de, mais o nome substantivo vita, significando fora da vida? Portanto, São Paulo mandou queimar os hereges e jogar suas cinzas ao vento”.
Alguns puseram-se a rir ante tão nova e inesperada etimologia, mas outros acharam-na profunda e verdadeiramente teológica. Percebendo o barbado que não eram por ele todos os sufrágios da assembléia, lançou mão do argumento decisivo: “Está escrito, — disse ele, — está escrito: Não permitirás que viva o malfeitor; ora, o herege é malfeitor, por conseguinte, etc.”. Então, todos admiraram o talento do doutor, e o seu juízo por conseguinte é universalmente aplaudido. Não passa pela cabeça de ninguém que a citada lei dizesse respeito unicamente aos feiticeiros, aos bruxos, aos magos e a todas as pessoas que os hebreus chamavam de malfeitores, porque, do contrário, seria preciso ainda condenar ao fogo a embriaguez e a fornicação. Mas, é uma tolice perder-me em semelhantes frioleiras, cujo número é tão grande que nem Dídimo nem Crisipo disseram tantas, embora tenham publicado uma enorme quantidade de volumes, o primeiro tratando da dialética e o segundo da gramática.
Apenas vos peço que me façais justiça numa coisa: se é permitido que esses divinos mestres se afastem tanto do bom senso e da verdade, não condenais, com mais forte razão, a minha insensatez nas citações, pois não passo, afinal, de uma sombra em confronto com os teólogos.
Volto de novo a São Paulo. Falando de si mesmo, diz esse apóstolo: Suportai pacientemente os tolos... Considerai-me também um tolo... Não falo segundo Deus, mas como se fosse tolo... Somos tolos por Jesus Cristo. Que glória para mim é o fato de um autor de tanto peso referir-se tão favoravelmente à Loucura! No entanto, o mesmo São Paulo, não contente com isso, passa a recomendar a loucura como coisa sumamente necessária à salvação. Aquele, dentre vós, — diz ele, — que quiser parecer sábio, deve tomar-se louco, para poder fazer-se sábio. Não chamou Jesus Cristo loucos, em São Lucas, àqueles dois discípulos com os quais se encontrou na estrada, depois da resurreição? Não obstante, isso não me causa tanta surpresa como o que disse o apóstolo das gentes: A loucura de Deus é melhor que a loucura dos homens. Ora, de acordo com a interpretação de Orígenes, não se pode aplicar essa loucura à opinião dos homens. Do mesmo gênero é esta passagem: O mistério da cruz é uma loucura para os que perecem.
Mas, porque hei de me cansar invocando tantos testemunhos? O homem-Deus, voltando-se para o seu Pai, já lhe disse nos salmos: Conheces minha loucura? Não é, pois, sem motivo, ou melhor é visivelmente por essa razão que os loucos são os prediletos de Deus. Nesse particular, o Ser Supremo assemelha-se aos príncipes da terra, pois que, em geral, essas divindades imortais não gostam nada das pessoas sensatas e honestas. Com efeito, César temia mais Cássio e Bruto do que ao glutoníssimo Antônio (101); Nero não podia tolerar Sêneca (102); Platão disiludiu-se com Dionísio, o tirano (103). No entanto, apreciaram muito os estúpidos, os simples e os imbecis.
O Homem-Deus, igualmente, condena sempre e detesta os sábios que só confiam na própria filosofia. São Paulo disse nítida e claramente: Deus escolheu tudo o que há de tolo no mundo... Deus julgou conveniente salvar o mundo da loucura. E assim o fez, decerto, porque não teria podido fazê-lo com a sabedoria.
O próprio Deus diz pela boca do profeta Isaías: Eu confundirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes. E a humanidade de Jesus não dá graças a Deus por ter ocultado aos sábios o mistério da salvação, para revelá-lo aos pequenos, isto é, aos maluquinhos, com toda a força e energia do vocábulo grego? Pela mesma razão, podemos explicar ainda a contínua guerra que, segundo o evangelho, fez o Salvador aos doutores da lei, aos escribas e aos fariseus, ao mesmo tempo que tomava o partido do vulgo ignorante. Desgraçados de vós, — dizia ele, — oh escribas e fariseus! Não significará essa imprecação o mesmo que desgraçados de vós, oh sábios? Finalmente, o Senhor do universo só costumava conversar com os meninos, as mulheres e os pescadores. Também Jesus Cristo preferia, entre tantas espécies de animais, os que mais se afastavam da sagacidade da raposa: escolheu um burrinho para o seu carro de triunfo, quanto teria podido cavalgar um soberbo leão. O Espírito Santo desceu sobre a segunda pessoa da Santíssima Trindade, não em forma de águia ou de gavião, mas de pomba, que é o mais simples dos pássaros. Além disso, as sagradas escrituras falam freqüentemente de animais que têm um instinto muito limitado, que são os veados, os enhos e os cordeiros. E não é de ovelhas que Jesus Cristo chama os que são eleitos para gozar com ele do reino dos céus? Ora, onde haverá animal mais estúpido do que a ovelha? Antigamente, por desprezo e injúria, costumava-se dar esse nome às pessoas estúpidas e idiotas. Ainda mais: em virtude da comparação dos eleitos com as ovelhas, Jesus Cristo vangloria-se do título de pastor e gosta muitíssimo do nome de Cordeiro. De fato, é com esse nome que São João Batista o faz conhecer, quando diz: Eis o Cordeiro de Deus! E sob essa forma é ele igualmente representado em diversas visões do Apocalipse.
Mas, quais são as nossas conclusões do que aqui fica dito? Ei-las:
Os homens são malucos, sem excetuar mesmo os que fazem profissão de piedade. Jesus Cristo, que é a sabedoria do Pai, procede como tolo ao unir-se à natureza humana da forma por que o fez, isto é, tornando-se pecador para redimir o pecado. Observai como o Salvador executou dignamente o seu projeto. Tendo estabelecido, em seus decretos, que salvaria os homens com a loucura da cruz, utilizou nessa tarefa apóstolos grosseiros e idiotas, recomendando-lhes calorosamente que evitassem a sabedoria e seguissem a loucura, e indicando-lhes o exemplo dos meninos, das gralhas, e dos pássaros, seres sem nenhum artifício e sem inquietações que só se orientam pelas leis da natureza e pelo mecanismo do instinto.
Esse legislador proibiu-lhes que se preparassem para comparecer perante os tribunais dos reis e os presídios, e não quis que pensassem no dia seguinte nem observassem a medida do tempo, com receio de que, fiando-se na própria sabedoria, se abandonassem inteiramente à sua providência. E foi por essa razão que o grande Arquiteto do universo proibiu que o primeiro e lindo par de esposos, por ele feitos e unidos em matrimônio, provassem o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, sob pena de sua desgraça e morte. É a melhor prova de que a ciência é o veneno da felicidade. São Paulo rejeita-a como perniciosa, ao dizer que ensoberbece o coração, e creio que São Bernardo exprimiu o mesmo sentimento desse apóstolo, ao chamar monte do saber àquele monte no qual o soberbo Lúcifer fixou sua morada.
Não me parece que deva silenciar sobre o sumo crédito de que gozo no céu, pois que aí facilmente se obtém o perdão com o meu nome, ao passo que não é favorável o da sabedoria. Pecou um homem com conhecimento de causa? Não penseis que procure alegar suas luzes, pois pode considerar-se feliz quando pode cobrir-se com o manto da loucura. É por isso que Adão, no livro XII dos Números, se não me engano, querendo implorar o perdão para si e para a sua mulher, exclama: Rogo-vos, Senhor, que não nos condeneis por esse pecado que tolamente cometemos! O mesmo fez Saul, para desculpar-se com Davi. Logo se vê — diz ele — que agi como louco! O próprio Davi procurando evitar a vingança divina, exclamou: Senhor! Suplico-vos que canceleis a iniqüidade da partida do vosso servo, pois agimos como loucos! Bem vedes que não podia esperar ser favorecido, se não aduzisse como desculpa a sua tolice e a sua ignorância.
Mas, de todas as provas, a que corta a cabeça do touro é a prece do Salvador na cruz pelos seus crucificadores: — Perdoai-lhes, Pai, — disse ele, e o Deus moribundo não aduziu em favor deles outra desculpa senão a da loucura, acrescentando: porque não sabem o que fazem. Disse São Paulo a Timóteo: Deus usou de misericórdia para comigo porque a minha incredulidade era efeito da minha ignorância. Mas, que significa essa ignorância? Não significará mais estultice do que malícia? Qual é o sentido destas palavras: Deus usou de misericórdia para comigo porque, etc? Não será, talvez, o de demonstrar claramente que, sem o crédito e a recomendação da loucura, São Paulo não teria obtido nenhuma misericórdia?
O místico salmista mostrou-se, igualmente, da minha opinião naquela passagem que eu me esqueci de pôr no seu lugar: Dignai-vos Senhor, esquecer os delitos da minha juventude e das minhas ignorâncias. Refletistes bem sobre esse divino cantor? Escusa-se por dois títulos: um, pela juventude, idade de que sou a fiel e inseparável companheira; outro, pela ignorância, e notai que exprime a sua ignorância no plural, o que mostra a força imensa da sua loucura.
Para terminar logo uma enumeração que por natureza não acabaria nunca, quero vos fazer ver, sucintamente, que a religião cristã se coaduna perfeitamente com a loucura e não tem a menor relação com a sabedoria. Como essa proposição pareça um verdadeiro paradoxo, não serei tão irrazoável que pretenda me acrediteis baseados apenas em minha boa fé. Vamos, pois, às provas.
Em primeiro lugar, vemos os que, com maior solicitude, intervém nos sacrifícios e outras cerimônias do culto, não são as pessoas mais sensatas, mas os meninos, os velhos as mulheres e os ignorantes. E de onde lhes vêm o desejo de se aproximarem tanto do altar e o transporte que experimentam pela devoção? Vêm de um impulso totalmente mecânico da natureza. Em segundo lugar, os fundadores da religião cristã, fazendo profissão de uma maravilhosa simplicidade, eram os inimigos mais declarados do estudo das ciências. Finalmente, é impossível achar loucos mais extravagantes que os que se abandonam inteiramente ao ardor da piedade cristã. Jogam fora o dinheiro como a água, desprezam as injúrias, deixam-se enganar, não vêem nenhuma diferença entre os amigos e os inimigos, sentem horror pela volúpia: a abstinência, as vigílias, as lágrimas, os padecimentos, os ultrajes, eis todas as suas delícias; além disso, odeiam a vida e desejam a morte, ao ponto de parecerem absolutamente privados de senso comum, não passando de corpos sem alma e sem sentimento. Que nome lhes daremos, se o de loucos não lhes fica bom? Não devemos, pois, estranhar que os judeus tenham considerado os apóstolos como borrachos. O juiz Festo não teria razão ao tomar São Paulo por um extravagante.
Uma vez que, sem o perceber, me arvorei em sábia e em raciocinadora, quero ir até ao fim do assunto. Coragem, meu belíssimo espírito! Sustentemos, diante desses ouvintes, diante dessa ilustre sociedade de loucos, uma tese inteiramente nova e inesperada. Sim, meus caros senhores, quero mostrar-vos que a felicidade dos cristãos, essa felicidade almejada com tantas penas e tantos trabalhos, não é senão uma espécie de loucura e de furor. Como! vós me olhais de soslaio e com desdém? Devagar, devagar: não nos apeguemos às palavras, que não passam de sons articulados e arbitrários. Limitemo-nos ao exame da coisa. Entro no assunto.
O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha aquela dos platônicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da máquina orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. É por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam nossa alma das coisas visíveis e corporais. Por isso, quando a alma emprega os órgãos do corpo de acordo com a economia natural, costuma dizer-se sábia e sã; mas, quando, rompendo os liames, procura fugir do cárcere, pôr-se em liberdade, então se diz em estado de loucura. Quando essa desordem provém de enfermidade ou alteração dos órgãos, dão-lhe todos o nome de furor. Por outro lado, vemos esses felicíssimos loucos que predizem o futuro, que conhecem línguas e ciências sem nunca as terem aprendido, e que mostram ter em si mesmos algo de divino. E de onde provém esse prodígio? Creio não haver dúvida de que provém da alma, que, tornando-se um pouco mais livre da servidão do corpo, começa a utilizar sua força natural.
Creio provir igualmente dessa causa a faculdade que têm os moribundos de dizer coisas prodigiosas, como que inspirados. O amor e o zelo da piedade produzem também essa alienação dos sentidos, que não parece ser, é verdade, o mesmo gênero de loucura, mas desta se aproxima de tal forma que em geral se lhe dá o mesmo nome.
Com efeito, quem não trataria como loucos, e como loucos em último grau, aqueles homenzinhos que levam uma vida totalmente diversa da dos outros mortais? E aqui vem muito a propósito a idéia de Platão. Imaginou ele uma caverna repleta de pessoas presas, da qual conseguiu fugir um dos prisioneiros. Este, depois de levar muito tempo vagando sem destino, voltou e gritou em altas vozes aos companheiros: — Meus caros amigos! Como me inspirais piedade! Só vedes sombras e fantasmas, em suma, sois verdadeiramente tolos. Bem diversa é a minha situação, pois só vi coisas sensíveis existentes, reais. — Então, do seu canto, os encarcerados, que nunca mais saíram do subterrâneo, entreolhando-se com surpresa, exclamaram: — Que nos quer dizer com isso esse louco? Com certeza perdeu o juízo. — O mesmo costuma suceder com homens: os mais sensuais têm maior admiração pelas coisas materiais, quase acreditando que não existam outras; os que se consagram à piedade, ao contrário, quanto mais relação com o corpo tem um objeto, tanto menos lhe dão valor e passam a vida sempre imersos na contemplação das coisas invisíveis.
A principal ocupação dos mundanos é acumular sempre riquezas e contentar em tudo e por tudo o próprio corpo, pouco ou nada se importando com a alma, cuja existência, por ser ela invisível, muitos chegam mesmo a pôr em dúvida. Já as pessoas inflamadas pelo fogo da religião seguem um caminho totalmente oposto e depositam toda a sua confiança em Deus, que é o mais simples de todos os seres: depois dele e dependendo dele, pensam na alma, como sendo a coisa que mais próxima está às divindades. É assim que não pensam no corpo e não só desprezam os bens da fortuna como até os recusam. E quando, por dever, são obrigados, como pais de família, a pensar nos interesses temporais, por aí enveredam contra a vontade e experimentam um vivo pesar, porque têm como se não tivessem e possuem como se não possuíssem.
Existem ainda muitos outros graus de diferença entre os que se ocupam somente com o corpo e os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma. Para melhor distinguirmos esses graus, estabeleçamos um princípio incontestável.
Embora todos os sentimentos da alma tenham uma correspondência necessária com o corpo, há contudo duas espécies: uns são materiais, como o tato, a audição, a vista, o olfato e o paladar; outros têm menor relação com os órgãos, como sejam a memória, o intelecto e a vontade. Disso resulta que a alma tem maior ou menor forca à proporção que se aplica mais ou menos a esses diversos sentimentos. Raciocinemos, agora, sobre essa suposição. Assim como os que se abandonam totalmente à piedade se tornam o quanto podem superiores aos sentidos do corpo, mortificando-o a tal ponto que acabam perdendo toda sensibilidade, — como São Bernardo, por exemplo, que, segundo a lenda, bebia óleo por vinho sem perceber, — assim também os sensuais têm um grande vigor de ânimo pelos sentidos do corpo e uma fraqueza extrema pelos da alma. Além disso, há algumas paixões que afetam o corpo mais de perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a soberbia, a inveja, contra as quais movem os verdadeiros devotos, se é que os há, uma perpétua guerra, ao passo que os adeptos da natureza acham que não podem viver sem essas coisas. Existem ainda outras que têm um lugar intermédio e são consideradas naturais, como sejam: amar a pátria, os parentes, os filhos diletos, os vizinhos, os amigos. Quase todos os homens possuem algo dessas paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para extirpá-las do coração ou ao menos espiritualizá-las. Um filho, por exemplo, ama seu pai: julgais que ele honre a paternidade e ame de fato aquele de quem recebeu a vida? — Ora essa! Que foi que me deu meu pai, — diz o devoto, — a não ser esse corpo miserável, que é o meu pior inimigo? Aliás, também isso eu o devo a Deus, único e verdadeiro autor do meu ser. Amo meu pai como um homem em quem resplende a imagem daquela suprema inteligência que é o bem supremo e fora da qual nada existe de amável nem de desejável. — É também com essa regra que as pessoas de mortificação misturam todos os deveres da vida, de modo que, quando não desprezam em geral todas as coisas visíveis, pelo menos as põem infinitivamente abaixo das invisíveis.
Chegam mesmo a dizer que, nos sacramentos e nas outras funções do culto, não existiria a matéria sem o espírito. Nos dias de jejum, acreditam que seja quase nada a abstinência das carnes e da ceia, se bem que a maioria faça consistir nesses dois pontos toda a obrigação do preceito. Os devotos vos dizem que é preciso jejuar com o espírito, dominar as próprias paixões, suprimir a cólera e o orgulho, a fim de que a alma, mais desembaraçada da massa do corpo, possa melhor gozar dos bens do céu. O mesmo acontece em relação à missa: — Se bem que não desprezemos — dizem eles — tudo o que é visível nesse sacrifício, todavia, os sinais não seriam menos inúteis que as cerimônias, quando não perniciosos, se não fosse o socorro do espirito. — Representando esse mistério a paixão do Salvador, faz-se mister que a representem também os fiéis, dominando, extinguindo e sepultando suas paixões, a fim de ressurgirem numa nova vida e se unirem a Cristo e aos seus membros. Os devotos costumam assistir à santa misa com a referida diposição, mas o mesmo não acontece com a maior parte dos homens, que, não reconhecendo nesse sacrifício senão a obrigação de comparecer, contentam-se em olhar, ouvir, prestar atenção ao canto e às cerimônias. Mas, não é só no que diz respeito às coisas que acabo de vos referir a título de exemplo que os anjos mortais rompem toda relação com os corpos e com a matéria: para se elevarem aos bens eternos, e invisíveis e espirituais, fazem o mesmo com tudo o que acontece no curso da vida.
Vós mesmos não podereis negar, quando eu vo-lo tiver brevemente demonstrado, que a infinita recompensa desejada que buscam com tanta ansiedade não é senão uma espécie de furor, Confirmo o meu sentimento com um oráculo do divino Platão: O furor dos amantes — diz o entusiasta filósofo — é de todos o mais feliz. Com efeito, um amante apaixonado não vive mais em si mesmo, mas na pessoa que se apoderou do seu coração, e, quanto mais sai de si mesmo para transfundir-se no objeto do seu amor, tanto mais sente redobrar-se o seu prazer. Não teremos igualmente razão de qualificar com o nome de furor o próprio estado de uma alma devota que arde de desejo por alcançar a perfeição evangélica e que não procura senão sair do seu corpo pelo desprezo dos sentidos? Trazei à vossa memória os modos de dizer freqüentemente usados: Está fora de si... Voltou a si... Caiu em si... Além disso, segundo a idéia de Platão, pelo grau de amor é preciso medir a grandeza do furor e da felicidade. Qual será, pois, a vida dos beatos no paraíso, vida pela qual suspiram as almas devotas com tanto transporte? Como, naquele estado de gozo perfeito e sempre novo, a alma vitoriosa e triunfante absorverá o corpo, resulta que esse absoluto domínio, bem longe de causar o menor sofrimento, torna-se natural, e o espírito se achará como no seu reino e gozará o fruto dos esforços feitos para reduzir o corpo a uma perfeita escravidão. Além disso, a alma verá de maneira incompreensível, como que absorta naquela suprema inteligência por que é infinitamente superada. E assim é que o homem ficará fora de si e não será feliz senão quando, não se achando mais em si mesmo, receber uma inexprimível felicidade daquele supremo Bem que tudo atrai a si. Mas, como essa felicidade só pode ser destruída pela união da alma com o corpo, e sendo a vida dos santos na terra uma contínua meditação e uma sombra das alegrias inefáveis do paraíso, resulta que principiam a gozar antecipadamente, neste mundo, a recompensa que lhes é prometida. É bem verdade que, em confronto com a felicidade eterna, não passa de uma gota e de uma sombra a que experimentam os devotos nesta terra. Não obstante, essa gota, essa sombra é incomparavelmente superior a todos os prazeres dos sentidos, mesmo que se pudessem gozar todos ao mesmo tempo, porque todas as coisas espirituais superam infinitamente as materiais e os bens invisíveis ultrapassam de muito os visíveis. É, aliás, o que promete um profeta, quando diz: Os olhos não viram, os ouvidos não escutaram, o coração do homem não sentiu ainda o que Deus preparou para os que o amam. É esse gênero de loucura que, bem longe de se perder quando se passa da terra ao céu, alcança, ao contrário, seu último grau de perfeição.
Para vos falar novamente daqueles aos quais Deus, por um favor todo especial, concede a graça de gozar antecipadamente as delícias da beatitude dir-vos-ei que são eles em número muito reduzido e que, além disso, estão sujeitos a certos sintomas que muito se assemelham aos da loucura: suas palavras são desconexas e fora do uso humano, ou, mais claramente, não sabem o que dizem; sua fisionomia transforma-se a cada momento, e ora estão alegres, ora melancólicos; choram, riem, suspiram, numa palavra, estão inteiramente fora de si. Acontece que voltam os seus sentimentos? Protestam que positivamente não sabem de onde vêm nem se existem somente na alma ou também no corpo, nem se estarão acordados ou dormindo. E de tudo depois que viram, ouviram, disseram, ou não se recordam ou fazem uma idéia tão confusa como se tivessem sonhado.
Só sabem de uma coisa: que se acham felicíssimos no seu delírio. Eis porque sofrem a convalescença do cérebro e tudo sacrificariam de bom grado para serem perpetuamente loucos nessas condições. No entanto, toda essa felicidade não passa de uma tenuíssima migalha da mesa celeste: imaginai, agora, o que não será o eterno banquete!
Mas parece que, sem refletir no que sou, vou ultrapassando há bastante tempo todos os limites. Por conseguinte, se tagarelei demais e com demasiada ousadia, lembrai-vos de que sou mulher e sou a Loucura. Ao mesmo tempo, porém, não vos esqueçais deste antigo provérbio dos gregos: Muitas vezes, também o homem louco fala judiciosamente. E não ser que pretendais que, nesse provérbio, não estejam incluídas as mulheres, pois eu disse homem e não mulher.
Esperais um epílogo do que vos disse até agora? Estou lendo isso em vossas fisionomias. Mas, sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter de memória toda essa mistura de palavras que vos impingi. Em lugar de um epílogo quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Eu jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo. E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte de memória fiel demais.
E, por isso, sedes sãos, aplaudi, vivei, bebei, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura.
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