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sábado, maio 27, 2006

ELOGIO À LOUCURA - Parte 06 - Erasmo de Rotterdam

Não posso deixar de vos dar, aqui, um conselho salutar: nunca desprezeis essa vaga geração bastarda (os mendigos, sobretudo), embora ela viva separada da república. É que os frades, por meio do canal que se chama a confissão, estão ao par de todos os mais íntimos segredos das pessoas. Não se pode dizer que ignorem ser um delito capital a revelação das coisas ouvidas no tribunal da penitência. Isso, porém, não impede que o façam em diversas circunstâncias, sobretudo quando, alegres e esquentados pelo vinho, querem divertir-se contando histórias engraçadas. É verdade que, para isso, usam das maiores cautelas, pois em geral não citam os nomes das pessoas. Desgraçado daquele que irritar esses zangões da sociedade! A vingança vem pronta como um raio do céu. Subitamente, no primeiro discurso ao povo, lançam os seus dardos contra o inimigo, tão bem pintado pelo padre pregador com suas caridosas invectivas que seria preciso ser cego para não saber a quem visam atingir. E o mastim só deixará de ladrar quando, a exemplo do que fez Enéias com o Cérbero, lhe taparem a boca com fogaças. Já que falamos desses bons apóstolos no púlpito, dizei-me se não é verdade que abandonaríeis qualquer charlatão, qualquer saltimbanco, para ouvir os seus ridículos discursos. Bem poderiam eles chamar-se, com toda a honra, os macacos dos retóricos, tal é o prazer que experimentam ao imitar as regras estabelecidas pelos retóricos sobre a arte de falar. Santo Deus! observai como gesticulam, corno são mestres em modular a voz, como cantam, como se remexem, como ficam senhores do assunto, como fazem retumbar toda a igreja com os seus socos e os seus berros. É no silêncio do claustro que eles apreendem essa veemente maneira de evangelizar, que passa de um fradeco a outro como um segredo de suma importância. Sendo eu apenas uma divina mulherzinha, não me é lícito iniciar-me em tão profundos mistérios, mas não quero deixar de vos dizer o que tenho podido anotar por bom preço.


Principiam sempre as suas mixórdias com uma invocação tomada de empréstimo aos poetas, e fazem um exórdio sem relação alguma com o assunto que devem abordar. Devem, por exemplo, pregar a caridade? Começam pelo rio Nilo. Devem pregar sobre o mistério da cruz? Começam pelo Belo, o fabuloso dragão da Babilônia (89). Devem pregar o jejum quaresmal? Começam pelas doze constelações do zodíaco. Devem pregar a fé? Começam pela quadratura do círculo. E assim por diante. Eu mesma, que vos falo, já ouvi uma vez um desses pregadores, homem de uma loucura consumada (perdoai-me, atrapalho-me sempre), queria dizer de uma doutrina consumada.


Esse homem devia explicar o impenetrável mistério da Trindade, mas, para patentear a sublimidade do seu engenho e para contentar os ouvidos dos teólogos, não quis seguir o caminho habitual. E que estrada tomou? Era mesmo preciso um homem da sua envergadura para fazer a escolha. Começou o discurso pelo alfabeto e, depois de ter, com prodigiosa memória, recitado exatamente o A B C passou das letras às sílabas, das sílabas às palavras, das palavras à concordância do sujeito com o verbo e do substantivo com o adjetivo. Enquanto isso, todo o auditório estava suspenso e não poucos perguntavam, com Horácio, qual poderia ser o objetivo de tantas frioleiras. Mas, o padre pregador tirou logo a dúvida dos ouvintes mostrando que elementos da gramática eram o símbolo e a imagem da sacrossanta Trindade. E o mostrou com evidência igual à que mal poderia conseguir um geômetra nas suas demonstrações. É preciso confessar, aliás, que essa demonstração de sublime eloqüência custara uma imensa fadiga ao nosso non plus ultra dos teólogos, pois empregou em sua tarefa nada menos de oito bons meses. O pobre homem, porém, ressentiu-se, e os extraordinários esforços feitos por tão bela obra-prima tornaram-no mais cego do que um toupeira, atraída que foi por seu espírito toda a agudeza da vista. Mas, quem o diria? Muito pouco é o seu desgosto por ter perdido a vista, e até lhe parece ter adquirido a glória por bom preço.


Tive ainda o prazer de escutar outro pregador da mema têmpera. Era venerável teólogo de oitenta anos, mas tão corrompido na teologia que todos o teriam tomado pelo próprio Scot ressuscitado. O bom velho subira ao púlpito para explicar o adorável mistério do Santíssimo Nome de Jesus.


Ah! saiu-se às maravilhas! Demonstrou o orador, mas com uma sutileza imperceptível, que tudo quanto se podia dizer para glorificar o Salvador, tudo se achava nas letras componentes do seu angustíssimo nome. Sabeis todos, senhores, a língua latina? Se houver alguém que não a saiba, poderá dormir um pouquinho. Em primeiro lugar, fez observar o velho catedrático que o substantivo Jesus só tem em sua declinação três casos diferentes: o nominativo, o acusativo e o ablativo. Rara e curiosa doutrina! Como lamento a ignorância dos que não podem saboreá-la! Mas, que significam esses três casos? E isso é coisa que se pergunte? Pois não se vêem neles, claramente expressas, as três divinas pessoas da mesma natureza? Mas, ainda há outra coisa! O primeiro desses três casos, refleti bem, termina em s, Jesus; o segundo em m, Jesum; e o terceiro em u, Jesu. Grande mistérios, meus irmãos! Essas três letras finais significam que o Salvador é ao mesmo tempo o Sumo, o Médio e o Último. Restava, porém, resolver uma dificuldade mais espinhosa que todos os problemas de matemática, e, não obstante, ele o conseguiu de forma surpreendente. O velho bajoujo teve a felicidade de separar o vocábulo Jesus em duas partes iguais: Je-Su. Mas, que faremos daquele s que, tendo perdido o companheiro, está surpreso de se achar sozinho? Um pouco de paciência e logo repararemos o mal. Os hebreus, em lugar de s, pronunciam syn: ora, em bom escocês, syn quer dizer pecado. Pois bem! — exclamou o pregador — quem será tão incrédulo ao ponto de negar que o Salvador tirou os pecados do mundo?


Com essa explicação tão profunda quanto imprevista, todos os ouvintes, sobretudo os teólogos, foram tomados de tal surpresa que pareciam novas Níobes (90), e eu me pus a rir com tanta força que pouco faltou para que me sucedesse o mesmo inconveniente que ao irriquieto Príapo, quando teve a curiosidade, que lhe custou caro, de espiar os mistérios noturnos de Canídia e Ságana (91). Com efeito, quando foi que os oradores gregos e romanos já se serviram, em suas orações, de uma introdução tão desesperada? Esses grandes homens julgavam vicioso o exórdio que não tivesse relação alguma com o assunto. A natureza ensinou tão bem aos homens esse método, que até um tratador de porcos, ao precisar contar alguma história, não começará decerto com uma coisa estranha, mas entrará imediatamente no assunto. Os nossos doutíssimos frades, ao contrário, acreditariam passar por maus retóricos se o preâmbulo, como dizem eles, tivesse a menor conexão com o resto do argumento, não pondo os ouvintes na necessidade de perguntar: Aonde irá ele chegar por esse caminho?


Em terceiro lugar, propõem, em forma de narração, algum trecho do Evangelho, mas superficialmente e de fugida, e, se bem que devesse ser esse o seu principal dever, eles o tratam de passagem, quase que incidentalmente. Em quarto lugar, como se representassem uma nova personagem, levantam uma questão teológica, que embora não se coadune muito com o assunto, é por eles julgada tão necessária que lhes pareceria um pecado contra a arte a não inclusão dessa digressão. É nessas passagens que os nossos pregadores franzem soberbamente as teológicas sobrancelhas e atordoam os ouvidos do auditório com magníficos epítetos dedicados aos seus doutores: solenes, sutis, sutilíssimos, seráficos, santos, irrefragáveis, etc., etc. É também nessas passagens que, como uma saraivada, descarregam uma tempestade de silogismos, de maiores, de menores, de conseqüências, de corolários, de suposições; e, como bons intrujões, impingem essas insípidas e insolentes bagatelas da sua escola a uma multidão de ignorantes.


Eis-nos chegados, afinal, ao quinto ato da comédia, no qual, mais do que nunca, é mister que se mostrem valentes na arte. Desentranham, então, do armazém da sua memória, alguma estranha e portentosa fabulazinha, provavelmente tirada do Espelho Histórico ou dos Feitos Romanos, e a vão remendando e interpretando no sentido alegórico, tropológico, anagógico, até que, dessa maneira, terminam o discurso, o qual, com muita propriedade, pela surprendente variedade de suas partes, se poderia chamar, com Horácio, de verdadeiramente monstruoso.


Façamos, agora, em conjunto, o exame dos seus sermões. Os nossos reverendos aprenderam, não sei dizer de quem, que a introdução do discurse deve ser feita devagar e em voz baixa. Em virtude dessa regra, falam tão baixinho no exórdio que sou capaz de apostar que nem mesmo eles ouvem o que dizem, como se se dispusessem a falar para não serem entendidos por ninguém. Além disso, ouviram dizer que, para despertar as emoções, o orador deve empregar, de vez em quando, a veemência da exclamação. E assim é que, como fiéis, mas maus observadores desse preceito, quando todos os julgam muitos tranqüilos, eles, de repente e sem nenhuma razão, começam a gritar como verdadeiros maníacos. É com toda a sinceridade que vos digo que, ao se mostrarem assim mais doidos do que pregadores, bem se poderia prescrever-lhes uma boa dose de heléboro, pois bem se pode considerar louco aquele que grita por gritar. Ao mesmo tempo, convencidos de que o orador deve animar-se com o desenvolvimento do discurso, dizem pausadamente os primeiros períodos de cada parte, mas, logo depois, sempre sem haver razão para isso, levantam a voz com tanta força que, ao terminarem, a impressão é de que vão desmaiar. Finalmente, sabendo que as regras da retórica prescrevem que, de vez em quando, se despertem os ouvintes com alguma engraçada pilhéria, esforçam-se os nossos pregadores por motejar, mas — santo Deus! — como o conseguem maravilhosamente! Fazem justamente como o burro da fábula, ao querer tocar a lira.


Às vezes, esses cães da Igreja também sabem morder, mas sem fazer mal, porque mais parecem beliscar do que ferir. Ao afetarem uma grande liberdade apostólica, lançando-se contra os vícios e os maus costumes, é justamente quando revelam maior adulação. Pregam como os charlatães, e juraríeis que, embora conheçam muito mais que os frades o coração humano, com estes é que aprenderam a sua arte. Com efeito, é tal a semelhança das suas declamações que de duas uma: ou os charlatães aprenderam retórica com os nossos pregadores, ou os nossos pregadores estudaram eloqüência com os charlatães.


Apesar de tudo, nunca faltam os ouvintes, e eu mesma tenho o cuidado de me incluir entre eles. Há até alguns que os admiram como se fossem Cíceros e Demóstenes. Os que mais concorrem para ouvi-los são as mulheres e os negociantes, cujo afeto os bons pregadores procuram conquistar. Os negociantes, vendo-se adulados e justificados, prestam-lhes de bom grado uma porção de benefícios imerecidos, pois encaram tais donativos como uma espécie de restituição. Quanto às mulheres, têm elas vários motivos secretos para amar os religiosos, quando mais não fosse por encontrarem neles um bálsamo e um consolo contra os desgostos e o enjôo do laço conjugai.


Parece que já demonstrei suficientemente quanto me devem essas cabeças encapuzadas que, com vãs devoções, com cerimônias ridículas, com berros e ameaças, exercem sobre o povo uma particular tirania, na ânsia de serem comparados aos Paulos e aos Antônios. Mas, percebo que já falei muito sobre esses cômicos ingratos, que sabem tão bem dissimular os meus favores como fingir-se sinceramente religiosos. Deixo-os, pois, com muito prazer.


Já é tempo de dizer alguma coisa sobre os príncipes e os grandes, que são justamente o oposto dos velhacos e impostores de que acabei de falar, pois me prestam o seu culto sem nenhuma reserva e com a franqueza própria do seu estado. Se esses felizes semideuses tivessem na cachola meio grama apenas de cérebro, que haveria no mundo de mais triste e miserável que a sua condição? Quem quer que se desse ao trabalho de refletir atentamente sobre os deveres de um bom monarca, bem longe de querer usurpar uma coroa com o falso juramento, o parrícidio, o liberticídio, em suma, com os mais execrandos delitos, tremeria ante o aspecto de um cargo tão enorme. Com efeito, observemos em que consistem as obrigações de um homem que é posto à testa de uma nação. Deve dedicar-se dia e noite ao bem público e nunca ao seu interesse privado; pensar exclusivamente no que é vantajoso para o povo; ser o primeiro a observar as leis de que é autor e depositário, sem desviar-se nunca de nenhuma delas; observar, com firmeza e com os próprios olhos, a integridade dos secretários e dos magistrados; ter sempre presente que todos têm os olhares fixos na sua conduta pública e privada, podendo ele, à maneira de um astro salutar, influir beneficamente sobre as coisas humanas, ou, como um infausto cometa, causar as maiores desolações. Não deve esquecer-se nunca de que os vícios e os delitos dos súditos são infinitamente menos contagiosos que os do senhor, e repetir diariamente, a si mesmo, que o príncipe se acha numa elevação, razão por que, quando dá maus exemplos, a sua conduta é uma peste que se comunica rapidamente, fazendo enormes estragos; refletir que a fortuna de um monarca o expõe continuamente ao perigo de abandonar o justo caminho; resistir aos prazeres, à impureza, à adulação, ao luxo, pois nunca estará suficientemente preparado para reprimir tudo o que pode seduzi-lo. Deve, finalmente, conservar sempre na memória que, além das insídias, dos ódios, dos temores, de todos os males a que o príncipe se acha exposto a cada momento por parte dos seus súditos, deverá ele, mais cedo ou mais tarde, apresentar-se perante o tribunal do Rei dos reis, no qual lhe serão pedidas contas exatas de todos os seus menores atos, sendo ele julgado com rigor proporcional à extensão do seu domínio. Repito, pois, mais uma vez, que, se um príncipe refletisse bem sobre tudo isso, como o teria feito se fosse um pouquinho sábio, decerto não poderia comer nem dormir tranqüilamente um só dia em sua vida. Mas, não vos arreceeis, pois consegui um remédio para isso. Com o favor da minha inspiração, os príncipes descansam traqüilos sobre o seu destino e sobre os seus ministros, vivendo na ociosidade e só mantendo relações com pessoas que possam contribur para diverti-los de qualquer aflição ou aborrecimento. Acham eles que cumprem bastante os deveres de um bom rei divertindo-se diariamente nas caçadas, possuindo belíssimos cavalos, vendendo em benefício próprio os cargos e os empregos, servindo-se de expedientes pecuniários para devorar as energias do povo e engordar à custa do sangue dos escravos. Não se pode negar que usem de cautela na aplicação dos impostos, pois alegam sempre títulos de necessidade, pretestos de urgência, e, embora essas exações não passem, no fundo, de mera ladroeira, esforçam-se, todavia, por encobrí-las com o véu do interesse público, da justiça e da eqüidade. Dirigem ao povo belas palavras, chamando de bons, fiéis, afeiçoadíssimos os seus súditos, e, enquanto furtam com uma das mãos, acariciam com a outra, prevenindo assim os seus lamentos e acostumando-os, aos poucos, a suportar o jugo da tirania. Dito isso, quero fazer uma suposição: imaginai no trono (coisa que, aliás, acontece freqüentemente), imaginai no trono, dizia eu, um homem ignorante das leis, quase inimigo do bem público, que só tem em mira o seu interesse pessoal, escravo dos prazeres, menosprezador das ciências, que despreza a verdade, que não pode escutar uma linguagem sincera, que tem a felicidade dos escravos como último dos prazeres, que não segue senão suas paixões, que mede cada coisa pela própria utilidade. Colocai nesse homem a gargantilha de ouro, ornamento que significa o complexo e a união de todas as virtudes; colocai-lhe na cabeça a coroa enriquecida de pedras preciosas, o que o adverte de estar na obrigação de superar todos os outros em toda sorte de heróicas virtudes; ponde-lhe o cetro na mão, cetro que é o símbolo da justiça e de uma alma perfeitamente incorruptível; vestí-o, finalmente, com a minha púrpura, que denota um vivo amor ao povo e um ardentíssimo zelo por sua felicidade. Sou de parecer que, se esse monarca comprasse os seus ornamentos reais com a sua viciosa conduta, não poderia deixar de sentir vergonha e rubor, e estou convencida de que teria bastante receio de ser posto a ridículo, com os seus simbólicos enfeites, por algum lépido e sensato glosador.


Passemos, agora, aos grandes da corte. Não há escravidão mais vil, mais repulsiva, mais desprezível do que aquela a que se submete essa ridícula espécie de homens, que, não obstante, costuma ganhar para si, de alto a baixo, o resto dos mortais. Convenhamos, porém, que são modestíssimos num único ponto: é que, satisfeitos de possuir o ouro, as pedras, a púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude, cedem facilmente aos outros o cuidado da sabedoria e da virtude. Para eles, a maior felicidade consiste em ter a honra de falar ao rei, de chamá-lo de Senhor e Mestre absoluto, de fazer-lhe um breve e estudado cumprimento, de poder prodigalizar-lhe os títulos faustosos de Vossa Majestade, Vossa Alteza Real, Vossa Serenidade, etc. etc. Toda a habilidade dos cortesãos consiste em trajar-se com propriedade e magnificência, em andar sempre bem perfumados e, sobretudo, em saber adular com delicadeza. Quanto ao espírito e aos costumes, são verdadeiros Feácios (92), verdadeiros amantes de Penélope, a esse respeito, sabeis o que diz Homero (93), e, melhor do que eu, vo-lo repetirá a ninfa Eco. O vil escravo do monarca, quando não deva fazer a corte ao senhor (pois nesse caso se levantaria ao primeiro canto do galo), costuma dormir até ao meio-dia, e, mal desperta, o mercenário capelão, que já esperava por esse momento, resmunga-lhe às pressas uma missa. Em seguida, passa a cuidar do almoço, e daí a pouco, do jantar, ao qual sucedem imediatamente os jogos de dados e de xadrez, os bobos, as cortesãs, os divertimentos inconvenientes e todos os outros prazeres chamados passatempos. Esses devotos exercícios não se fazem sem uma ou duas merendas; depois, vem a ceia, e se passa a noite no meio das garrafas. E assim, sem pensar que se nasce para morrer, a vida passa rapidamente. As horas, os dias, os meses, os anos, os lustros transcorrem para eles sem nenhum aborrecimento, como um relâmpago. Tenho a impressão de sair de um banquete, ao vê-los gabaram-se de suas ridicularias. Aquela ninfa se julga mais próxima dos deuses, por arrastar atrás de si uma cauda mais longa do que as outras; esse fidalgo, por ter recebido do príncipe uma cotovelada no estômago, ao tentar penetrar na multidão, fica satisfeito e acredita haver menor distância entre ele e o soberano; aquele cortesão pavoneia-se com a corrente de ouro que lhe pende do pescoço, por ser muito mais pesada que a dos outros e servir, assim, não só para mostrar opulência como também sua robustez de carregador.


A vida dos príncipes e dos fidalgos leva-me, naturalmente, a falar também da dos papas, cardeais e bispos. Faz tanto tempo que essa sagrada gente, com surpreendente emolução, imita os reis e os sátrapas, que não tenho dúvida alguma em dizer que chegou a superá-los. Imaginai, agora, que um bispo, por divertimento, se pusesse a considerar o seu cortejo e ornamentos pontificais. Se um bispo refletisse que a candidez do retoque significa uma vida completamente imaculada; que a mitra bicórnia, cujas extremidades se unem em um nó, denota profundo conhecimento do Velho e do Novo Testamento; que as mãos enluvadas exprimem um coração depurado de todo contágio mundano na administração dos sacramentos; que a cruz dos sapatos o adverte de que deve velar continuamente pelo rebanho sob a sua guarda; que a cruz prelatícia que lhe pende do peito é sinal de vitória completa sobre as paixões humanas, — se o nosso prelado, repito, refletisse sobre todas essas belas coisas e muitas outras que eu suprimo, não será verdade que se tomaria magro, pensativo, macilento, hipocondríaco? Chegaria a causar piedade! Mas, não, não duvideis, eu remediei tudo. Aconselhei a esses pretensos sucessores dos apóstolos que seguissem um caminho inteiramente oposto, e ninguém jamais soube aproveitar melhor os meus conselhos. Com efeito, o principal objetivo dos nossos Ilustríssimos e Reverendíssimos consiste em viver alegremente, e, quanto ao rebanho, que dele cuide Jesus Cristo. Aliás, já não possuem os arcediagos, os vigários gerais, os confessores, os frades e mil outros fiéis mastins, que estão sempre em guarda contra o lobo do inferno? Os bispos chegaram a esquecer que o seu nome, tomado ao pé da letra, significa trabalho, zelo, solicitude pela redenção da almas. Mas — por Baco! — não se esquecem nunca das honrarias e do dinheiro.


Gabam-se os veneráveis cardeais de descenderem em linha reta dos apóstolos, mas eu desejaria que filosofassem um pouco sobre os seus hábitos, e fizessem a si mesmos esta apóstrofe: “Se eu descendo dos apóstolos, porque não faço, então, o que eles fizeram? Não sou senhor, mas simples distribuidor das graças espirituais, e muito breve terei de prestar contas da minha administração. Que significa esta nívea candidez do meu roquete, se não uma suma pureza de costumes? Que quer dizer esta sotaina de púrpura, se não um ardente amor a Deus? Que denota esta capa da mesma cor (tão ampla e espaçosa que bastaria para cobrir não somente a mula do eminentíssimo, mas até um camelo junto com o cardeal), se não uma caridade ilimitada e sempre pronta a socorrer o próximo, isto é, a instruir, a exortar, a acalmar o furor das guerras, a resistir aos maus princípios, a dar de boa vontade o próprio sangue e as riquezas pelo bem da Igreja? Para que tantos tesouros? Aqueles que pretendem representar o antigo colégio dos apóstolos não deveriam, antes de tudo, imitar a sua pobreza?” Afirmo que, se os cardeais fizessem a si mesmos semelhante apóstrofe, refletindo seriamente sobre todos esses pontos, de duas uma: ou devolveriam imediatamente o chapéu, ou levariam uma vida laboriosa, cheia de desgostos e de desejos, justamente como faziam os primeiros apóstolos da Igreja.


Prosternemo-nos, agora, aos pés do Sumo Pontífice, e beijemos-lhes religiosamente as santas pantufas. Os papas dizem-se vigários de Jesus Cristo, mas, se procurassem conformar-se à vida de Deus seu mestre; se sofressem pacientemente os seus padecimentos e a sua cruz, mostrando o mesmo desprezo pelo mundo; se refletissem seriamente sobre o belo nome de papa, isto é, de pai, e sobre o santíssimo epíteto com, que são honrados, — quem seria mais infeliz do que eles? Quem desejaria comprar, com todos os haveres, esse cargo eminente, ou quem, uma vez elevado ao mesmo, desejaria, para sustentar-se nele, empregar a espada, os venenos e toda sorte de violências? Ai! quantos bens perderiam eles se a sabedoria se apoderasse por um instante do seu ânimo! A sabedoria?! Bastaria que tivessem um grãozinho apenas daquele sal de que fala o Salvador. Perderiam, então, aquelas imensas riquezas, aquelas honras divinas, aquele vasto domínio, aquele gordo patrimônio; aquelas faustosas vitórias, todos aqueles cargos, aquelas dignidades e aqueles ofícios de que participam; todos aqueles impostos que percebem, quer nos próprios Estados, quer nos alheios; o fruto de todos aqueles favores e de todas aquelas indulgências, com as quais vão traficando tão vantajosamente; aquela numerosa corte de cavalos, de mulas, de servos; aquelas delícias e aqueles prazeres de que gozam continuamente. Observai, observai quantas coisas precisariam perder, sendo que isso é apenas uma sombra da felicidade pontifícia. Todos esses bens seriam logo sucedidos pelas vigílias, pelos jejuns, pelas lágrimas, pelas preces, pelos sermões, pelas meditações, pelos suspiros e mil outros trabalhos de natureza semelhante. Acrescentemos ainda que tantos escritores, tantos copistas, tantos notários, tantos advogados, tantos promotores, tantos secretários, tantos banqueiros, tantos escudeiros, tantos palafreneiros, tantos rufiões (silêncio neste ponto, pois é preciso respeitar os ouvidos castos), em suma, toda aquela prodigiosa turba de pessoas de toda classe, que arruinam (que honram, queria eu dizer) a sé de Roma, — sim, digamos também que toda essa turba só poderia esperar morrer de fome. Seria o mais bárbaro, o mais abominável, o mais detestável de todos os delitos querer reduzir à sacola e ao bastão os supremos monarcas da Igreja, os verdadeiros luminares do mundo. Dizem eles que a Pedro e a Paulo competia viver de esmolas, ficando com todo o peso do pontificado, mas eles podem comodamente sustentá-lo, reservando-se eles, para si, somente o que no mesmo existe de esplêndido e de agradável. Agora, pergunto: não fazem muito bem? Graças a mim, por conseguinte, é que nunca houve um papa que vivesse no ócio e na moleza. Como as funções episcopais (94) consistem em ornamentos misteriosos e quase teatrais, em cerimônias, em títulos faustosos de beatíssimo, reverendissimo, santíssimo, em bênçãos e maldições, julgam eles que já fazem bastante a vontade de Jesus Cristo, sem suspeitarem o que lhes poderá este dizer-lhes um dia. Agora não é mais necessário fazer milagres; instruir o povo dá muito trabalho; ensinar as escrituras cheira à escolástica; para pregar, seria preciso tempo; chorar convém somente às mulheres; ser pobre, oh! que coisa feia! deixar-se vencer é vergonhoso demais e indigno de um homem que mal admite que lhe beijem o beatíssimo pé os reis mais poderosos; finalmente, morrer, oh! é a mais amarga de todas as coisas! ser crucifcado — irra! — é uma infâmia horrível!


Assim, pois, as armas dos papas não consistem todas naquelas doces bênçãos de que fala São Paulo (95) e das quais são eles tão avaros. Consistem elas em interdições, suspensões, gravames, anátemas, pinturas vingadoras (96) e naqueles terribilíssimo castigo pelo qual um beatíssimo padre pode mandar à vontade qualquer alma para o inferno. Os nossos Santíssimos Pais de Cristo e o seus vigários gerais nunca empregam com maior zelo esse espantoso castigo do que no caso daqueles que, à instígação do demônio, tentam diminuir ou danificar o patrimônio de São Pedro. Dizia este bom apóstolo ao seu Mestre: — Deixámos tudo para seguir-te. — Compreendereis que grande sacrifício fez o pobre pescador! Foi a fortuna o que ele conseguiu em virtude dessa renúncia; é por isso que Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios, e percebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas. É verdade que nem ao menos poupam os corpos, e, inflamados pelo zelo de Jesus Cristo, desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para sustentar as suas razões. Bem vedes que não se pode fazer semelhante guerra sem derramar o sangue cristão. — Mas, que importa? — respondem os papas — Estamos defendendo apostolicamente a causa da Igreja e só deporemos as armas quando tivermos vingado a esposa de Jesus Cristo contra os seus inimigos. — Eu desejaria saber, porém, se haverá para a Igreja inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos.


Além disso, assim como a Igreja cristã foi fundada com sangue, confirmada com sangue, dilatada com sangue, assim também os papas a governam com sangue, como se nunca Jesus Cristo tivesse existido para protegê-la e sustentá-la. A guerra é, por natureza, tão cruel, que muito mais conviria às feras do que aos homens; tão insensata que os poetas a atribuíram às fúrias do inferno; tão pestilenta que corrompe todos os costumes; tão iníqua que a fazem melhor perversos ladrões do que homens probos e virtuosos; finalmente, tão ímpia que nenhuma relação possui com Jesus Cristo nem com sua moral. Isso não impede que alguns pontífices abandonem todas as funções pastorais para consagrar-se inteiramente a esse flagelo da humanidade. Entre esses papas guerreiros, encontram-se até velhos (97) que agem com todo o vigor da juventude, que nenhuma consideração têm pelo dinheiro, que suportam corajosamente a fadiga e não têm o menor escrúpulo em fazer subverter as leis, a religião e a humanidade. Mas, não faltam eruditos aduladores para dar a esse manifestíssimo delírio o nome de zelo, piedade, valor. E acham razões para provar que desembainhar a espada e cravá-la no coração de um irmão não é absolutamente infringir o grande mandamento da caridade para com o próximo. Na verdade, ainda não sei se os papas, em matéria de guerra, seguiram o exemplo de alguns bispos da Alemanha, ou se estes bispos é que se julgaram autorizados, pela conduta dos papas, a empreender a guerra. O que é certo é que os prelados alemães agem com maior liberdade, porque, desprezando inteiramente o serviço divino, as bênçãos e todas as outras cerimônias do bispado, como verdadeiros sátrapas só respiram a guerra, chegando a sustentar que é dever de um bispo entregar a alma a Deus para defender a honra da sua dignidade. Os padres também estão, em geral, animados pelo mesmo espírito, não querendo de modo algum degenerar da santidade dos prelados. Assim, não podeis imaginar com que coragem empunham as armas toda a vez que se trata dos seus dízimos: espadas, fuzis, pedras, nada lhes escapa. Esses ministros do altar não cabem em si de alegria quando descobrem, nas obras dos antigos, alguma passagem com que possam aterrar as consciências e provar ao vulgo que lhes deve ainda muito mais do que os dízimos. Não há mais perigo de que lhes entre na cabeça o que leram em muitíssimos lugares sobre os seus deveres para com o povo. Deveriam ao menos lembrar-se de que a tonsura significa a obrigação de viverem livres de qualquer paixão humana, para se consagrarem totalmente às coisas do céu. Muito longe de fazerem tais reflexões, incidem em toda sorte de volúpia e julgam cumprir plenamente os seus deveres e as obrigação de praticar o bem, como dizem eles, quando murmuram, às pressas e entre os dentes, o ofício divino. Santo Deus! aposto que não há nenhuma divindade que queira escutá-los e, muito menos, que possa compeendê-los. Nenhuma divindade?! Estou convencida de que nem eles próprios se entendem entre si quando ornejam em coro. Mas, tanto os sacerdotes como os profanos sabem muito bem quais são os seus direitos e os seus emolumentos. Sabe-se mesmo, pelas mulheres, que quem serve o altar deve viver do altar. O que é incômodo os senhores padres costumam, prudentemente, descarregar sobre as costas alheias, numa devolução recíproca, como na péla. Os eclesiásticos costumam proceder mais ou menos como os príncipes seculares: assim como estes abandonam as rédeas do governo nas mãos dos primeiros ministros, que confiam a administração do Estado aos numerosos subalternos que se acham sob as suas ordens, assim também os ministros dos santuários costumam, modestamente, descarregar sobre o povo o peso da devoção e da piedade, e o povo, por sua vez, passa-o aos que denomina pessoas religiosas, como se não tivesse nenhuma relação com a Igreja e não tivesse feito nenhum voto no batismo. Em seguida, os padres, como se fossem iniciados no mundo e não em Cristo, dizem-se seculares e deixam aos regulares o pesado encargo da piedade; os regulares julgam-na especialmente destinada aos monges; os monges relaxados atribuem-na aos reformados; finalmente, todos se põem de acordo e pretendem que a devoção pertença aos mendicantes, que acabam por enviar a péla aos cartuxos, em cujo retiro se pode afirmar, efetivamente, que a piedade está sepultada, de tal forma se esforçam eles por viverem escondidos do mundo. Conduta semelhante têm os generais da milícia clerical. Os papas, sempre ativos e incansáveis em sua tarefa de receber dinheiro, descarregam sobre os bispos tudo o que há de incômodo no apostolado; os bispos sobre os párocos; os párocos sobre os vigários; os vigários sobre os frades mendicantes; e os mendicantes, finalmente, enviam as ovelhas aos pastores espirituais, que sabem tosquiá-las e tirar-lhes proveito da lã.


Mas, até onde me levou o assunto? O meu propósito não é investigar e satirizar a vida dos prelados e dos padres, mas fazer o meu elogio: que ninguém pense que, ao louvar os maus princípios, queira eu censurar os bons. Por conseguinte, só vos dei uma idéia superficial de todas as condições para vos demonstrar, à evidência, que nenhum homem pode viver feliz sem ser iniciado nos meus mistérios e sem participar dos meus favores. Invoco o testemunho da Fortuna, essa deusa da felicidade e da desgraça que, embora caprichosa ao extremo, tom sempre o prazer de secundar as minhas intenções. Com efeito, exatamente como eu, não será ela inimiga capital dos sábios? Em compensação, confere seus bens aos loucos e, por fim, ao vê-los dormindo, derrama-lhes no seio os seus tesouros. Decerto já ouvistes falar de um certo Timóteo, capitão ateniense, cuja fortuna foi tal que, mesmo dormindo, conquistou e saqueou cidades. Quando, porém, começou a atribuir tanta fortuna ao próprio mérito, foi abandonado pela deusa e caiu na maior miséria. Pois não se costuma dizer que os tolos são felizes e que até o mal se converte para eles num bem? No entanto, é justamente o contrário o que costuma suceder aos sábios. Já diz o provérbio: Quem, como Hércules, nasceu no quarto dia da lua, só pode esperar sofrimentos: montado no cavalo de Sejano, quebrará a perna; tendo dinheiro de Tolosa, pouco proveito terá. Mas, deixemos os provérbios, pois pode parecer que me apropriei de todos os comentários do meu Erasmo.


Volto, pois, ao meu assunto, e digo que a Fortuna só ama as pessoas que não pensam em nada, gostando de beneficiar os aturdidos e os temerários, isto é, os que dizem como César no Rúbicão: Alea jacta est. A sabedoria só pode inspirar temor, o que faz com que a condição de um verdadeiro filósofo chegue a causar piedade aos homens de bom senso. Com o cérebro repleto de belíssimas e sólidas especulações, quer físicas, quer morais, sente o estômago doer de fome e nem sequer sabe onde encontrar o necessário. Além disso, é abandonado, desprezado, odiado, evitado por todos, enquanto os tolos, verificando que o precioso metal que os anima constitui o móvel maior da sociedade civilizada, são elevados aos empregos públicos e em tudo favorecidos pela fortuna. Eis porque os que se consideram felizes quando acolhidos pelos grandes e quando conversam com esses deuses queridos, que são os meus escravos diletos, não têm necessidade alguma da sabedoria, que é a coisa mais detestada nas cortes e nos paços. Quereis enriquecer-vos no comércio? Renunciai à sabedoria, porque, do contrário, como poderíeis fazer um falso juramento sem vos sentirdes dilacerar por um horrível remorso? Como poderíeis deixar de enrubescer quando surpreendidos numa mentira? Como sufocaríeis os ásperos e tormentosos escrúpulos que sentem os sábios pelo furto e pela usura? Como poderíeis deixar de travar convosco uma contínua guerra íntima? Ambicionais as dignidades e os bens eclesiásticos? Um burro e um búfalo poderiam consegui-los mais facilmente que um filósofo. Amais a volúpia? As mulheres que a têm como principal escopo procuram os tolos e fogem dos sábios como dos escorpiões. Quem, finalmente, deseje gozar os prazeres da vida, deve cortar qualquer relação com os sábios e preferir tratar com a escória popular. Em suma, para resumir tudo numa única idéia, voltai-vos para todos os lados, e verieis que os papas, os príncipes, os juízes, os magistrados, os amigos, os inimigos, os grandes, os pequenos, todos, sem exceção, agem em virtude do ouro sonante. E, como o filósofo, fora do estritamente necessário, considere como esterco esse metal, não é de admirar que todos desprezem a sua intimidade.



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