VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR



segunda-feira, julho 24, 2006

Crítica da Razão Pura - Kant - Parte Segunda

CRÍTICA DA RAZÃO PURA – KANT

PARTE SEGUNDA
DA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDENTAL
LÓGICA TRANSCENDENTAL


Introdução

Idéia de Uma Lógica Transcendental

I – Da Lógica em geral

Nosso conhecimento emana de duas fontes principais do espírito: a primeira consiste na capacidade de receber as representações (a receptividade das impressões), e a segunda, na faculdade de conhecer um objeto por meio dessas representações (a espontaneidade dos conceitos). Pela primeira nos é dado um objeto, pela segunda é pensado em relação a essa representação (como pura determinação do espírito).

Constituem, pois, os elementos de todo nosso conhecimento, a intuição e os conceitos; de tal modo, que não existe conhecimento por conceitos sem a correspondente intuição ou por intuições sem conceitos. Ambos são puros ou empíricos: empíricos se neles se contém uma sensação (que supõe a presença real do objeto); puro, se na representação não se mescla sensação alguma. Pode chamar-se à sensação, a matéria do conhecimento sensível.

A intuição pura, portanto, contém unicamente a forma pela qual é percebida alguma coisa, e o conceito puro a forma do pensamento de um objeto em geral. Somente as intuições e conceitos puros são possíveis “a priori”; os empíricos só o são “a posteriori”.

Se denominamos sensibilidade à capacidade que tem nosso espírito de receber representações (receptividade), quando é de qualquer modo afetado, pelo contrário, chamar-se-á entendimento à faculdade que temos de produzir nós mesmos representações ou a espontaneidade do conhecimento.

Pela índole da nossa natureza a intuição não pode ser senão sensível, de tal sorte, que só contém a maneira de como somos afetados pelos objetos. O entendimento, pelo contrário, é a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível. Nenhuma dessas propriedades é preferível à outra. Sem sensibilidade, não nos seriam dados os objetos, e sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem certos conceitos, são cegos.

Assim, é necessário tornar sensíveis os conceitos (quer dizer, fornecer-lhes o objeto dado na intuição), bem como tornar inteligíveis as intuições (submetendo-as a conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades não podem trocar de funções. O entendimento não pode perceber e os sentidos não podem pensar coisa alguma. Somente quando se unem, resulta o conhecimento.

Cumpre, no entanto, não confundir as suas funções, importando separá-las e distingui-las cuidadosamente. Em semelhante distinção se acha a base para distinguir também a ciência das regras da sensibilidade em geral, quer dizer, a Estética, da ciência das leis do entendimento em geral, quer dizer, da Lógica.

A Lógica, por sua vez, pode ser considerada sob dois pontos de vista, conforme se examinem as operações gerais ou as operações particulares do entendimento. A primeira compreende as regras absolutamente necessárias do pensar, sem as quais não podem ter lugar as operações intelectuais, e, por conseguinte, ela encara esta faculdade, independentemente da diversidade dos objetos aos quais pode aplicar-se. A Lógica das operações particulares contém as regras para pensar retamente sobre certos objetos determinados.

A primeira pode chamar-se Lógica elementar; a segunda, é o orgânon desta ou daquela ciência. Esta última é habitualmente ensinada nas escolas como propedêutica das ciências, embora no desenvolvimento da razão humana ela seja o último lugar a ser atingido; pois só ali chegamos quando a ciência se encontra muito adiantada, e só espera a última palavra para atingir o mais elevado grau de exatidão e perfeição. Com efeito, é preciso conhecer os objetos suficientemente, para poder dar as regras segundo as quais pode formar-se a ciência.

A Lógica geral é pura ou aplicada. Na primeira, abstraímos todas as condições empíricas, sob as quais se exerce o nosso entendimento, p. ex.: a influência dos sentidos, o jogo da imaginação, as leis da memória, o poder do hábito, a inclinação etc.; conseguintemente, também as fontes dos prejuízos e, em geral, todas as causas verdadeiras ou supostas de que podem derivar-se certos conhecimentos que, por não se referirem só ao entendimento necessitam da experiência.

A Lógica geral e pura tem por único objetivo princípios “a priori” e é um cânon do entendimento e da razão, mas unicamente em relação à parte formal de seu uso, qualquer que seja o seu conteúdo (empírico ou transcendental). Diz-se que uma Lógica geral é aplicada, quando se ocupa das regras do uso do entendimento, sob as condições empíricas e subjetivas que nos ensina a Psicologia. Esta Lógica tem, pois, também, princípios empíricos, ainda que seja geral enquanto trata da aplicação do entendimento sem distinção de objetos. Portanto, não é um cânon do entendimento em geral, nem um orgânon das ciências particulares, mas unicamente um purificador (4) do entendimento comum.

Deve ser, pois, completamente separada na Lógica geral, aquela parte que constitui a teoria pura da razão, da outra que forma a Lógica aplicada (por mais que esta seja também geral).

Só a primeira é propriamente uma ciência, certa e árida, como o exige um tratado escolástico da doutrina elementar do entendimento. Nesta parte os lógicos devem ter sempre presentes, duas regras:

1) Como Lógica geral, abstrai a matéria do conhecimento intelectual e toda a diversidade de seus objetos, e só se ocupa da forma do pensamento.

2) Como Lógica pura, não tem nenhum princípio empírico e, por conseguinte, não empresta nada (como frequentemente se persuade) da Psicologia, que não exerce influência alguma sobre o cânon do entendimento. É uma doutrina demonstrada, e tudo deve ser nela amplamente “a priori”.

Quanto à Lógica que denomino aplicada (contra a significação comum desta palavra, que designa certos exercícios e cuja regra a Lógica pura fornece) é que representa o entendimento e as regras de seu uso necessário considerado “in concreto”, quer dizer, enquanto se acha submetido às condições contingentes do sujeito que poderão ser-lhe opostas ou favoráveis, não sendo jamais dadas “a priori”. Essa Lógica trata da atenção, de seus obstáculos e efeitos, da origem dos erros, do estado da dúvida, do escrúpulo, da persuasão, etc.

Possui com a Lógica geral e pura a mesma relação que existe entre a moral pura, que contém unicamente as leis morais necessárias de uma vontade livre em geral, e a ética propriamente dita (teoria das virtudes) que examina essas leis em relação aos obstáculos com que tropeçam nos sentimentos, inclinações e paixões a que muito ou pouco estão sujeitos os homens. Esta nunca seria uma ciência demonstrada, porque do mesmo modo que a Lógica aplicada, ela tem necessidade de princípios empíricos e psicológicos.


II – Da Lógica transcendental

Já temos dito que a Lógica geral faz abstração de todo conteúdo do conhecimento, quer dizer, de toda relação entre o conhecimento e o objeto, e que só compreende a forma lógica dos conhecimentos em todas as suas respectivas relações: em uma palavra, a forma do pensamento em geral. Mas assim como há intuições puras tanto quanto intuições empíricas (que a Estética transcendental prova), poderia muito bem achar-se uma diferença entre um pensamento puro e um empírico dos objetos.

Sendo assim, haveria uma Lógica em que se não faria abstração de todo o conteúdo do conhecimento, porque a que só contivesse as regras do pensamento puro de um objeto, excluiria todos esses conhecimentos cujo conteúdo fosse empírico. Esta Lógica investigaria também a origem do nosso conhecimento de objetos, enquanto tal origem não possa ser atribuída aos objetos; a Lógica geral, pelo contrário, não se ocupa com essa origem do conhecimento, e só se limita a examinar as nossas representações sob o ponto de vista das leis com que o entendimento a emprega e reúne entre si, quando pensa. Pouco lhe interessa que essas representações tenham sua origem “a priori” em nós outros ou que tenham sido dadas empiricamente; unicamente se ocupa da forma que o entendimento pode dar-lhes, quaisquer que sejam as suas fontes de proveniência. Devo fazer aqui uma observação que tem muita importância para o que se segue e que é preciso não olvidar um só instante.

A palavra transcendente não convém a todo conhecimento “a priori”, mas só àquele mediante o qual conhecemos que certas representações (intuições ou conceitos) não são aplicadas ou possíveis senão “a priori” e como o são (pois esta palavra designa a possibilidade do conhecimento ou de seu uso “a priori”). Desta sorte, não são representações transcendentais o espaço nem qualquer determinação geométrica “a priori” do espaço, e só pode ter o nome de transcendental o conhecimento da origem não empírica dessas representações e da maneira com que podem referir-se “a priori” a objetos da experiência.

Assim, também, será transcendental a aplicação do espaço aos objetos em geral, e empírica, quando se limitar unicamente a objetos dos sentidos. A diferença do transcendental e do empírico pertence, pois, tão-só à crítica dos conhecimentos e em nada respeita à relação desses conhecimentos com seus objetos.

Na presunção de que há conceitos que se podem relacionar “a priori” aos objetos, não como intuições puras ou sensíveis, mas somente como atos de pensamento puro, e que por conseguinte são conceitos, mas conceitos cuja origem não é empírica nem estética, nós concebemos previamente a idéia de uma ciência do entendimento puro e do conhecimento racional pela qual nós pensamos os objetos completamente “a priori”. Semelhante ciência que determinasse a origem, a extensão e o valor objetivo desses conhecimentos, se deveria chamar Lógica transcendental, porque ao mesmo tempo em que se ocupasse com as leis da entendimento e da razão, por outro lado, só teria que ver com objetos “a priori” e não, como a Lógica geral, com conhecimentos empíricos ou puros sem distinção alguma.



III – Divisão da Lógica geral em Analítica e Dialética

Que é a verdade? Com esta antiga quão célebre pergunta acreditava-se colocar em dificuldade os lógicos, obrigando-os a incidir na logomaquia mais lamentável, ou a confessarem a sua ignorância e, por conseguinte, toda a fatuidade de sua arte. A definição do vocábulo verdade, como sendo a conformidade do conhecimento ao objeto, já está admitida e suposta nesta obra; mas o que se deseja conhecer é o critério geral e certo de todo conhecimento.

Saber aquilo que racionalmente se deve indagar, já por si prova exuberância de entendimento e sabedoria; porque se a pergunta é absurda em si e requer respostas ociosas, não só desonra a quem a formula, como produz o inconveniente de precipitar no absurdo ao que sem pensar responde e dá deste modo o triste espetáculo de duas pessoas que, como dizem os antigos, um ordenha enquanto o outro segura a vasilha.

Se a verdade consiste na conformidade de um conhecimento com seu objeto, este objeto deve, por isso mesmo, ser distinguido de todos os outros; pois um conhecimento é falso se não concorda com o objeto a que se relaciona, por mais que de outro modo contenha algo que possa servir para outros objetos. Assim, um critério geral da verdade valeria, sem distinção de seus objetos, para todos os conhecimentos.

Mas como então se faria a abstração de todo conteúdo do conhecimento (de sua relação com o objeto), e a verdade precisamente se refere a tal conteúdo, é claro ser de todo impossível e absurdo salientar uma característica suficiente e universal da verdade.

E, como já antes chamamos ao conteúdo do conhecimento de sua matéria, é lógico dizer que encerra uma contradição querer-se buscar um critério universal para a verdade do conhecimento quanto à matéria, por ser contraditório em si. No que se refere ao conhecimento considerado simplesmente na forma (abstração feita de todo conteúdo), é claro que uma lógica, expondo as regras universais e necessárias do entendimento, fornece nessas mesmas critérios da verdade.

Tudo quanto contradite a essas leis é falso, porque o entendimento se põe em contradição com as regras gerais de seu pensamento, quer dizer: consigo mesmo. Mas esses critérios só respeitam à forma da verdade, quer dizer, ao pensar em geral, e se já estes conceitos são exatos, não são suficientes, porque ainda que um conhecimento concorde completamente com a forma lógica (quer dizer, que não esteja em contradição consigo mesmo), pode muito bem suceder que contradiga ao objeto.

O critério simplesmente lógico da verdade, a saber: a concordância de um conhecimento com as leis universais e formais do entendimento e da razão, será pois a condição “sine qua non”, quer dizer, negativa, de toda verdade; mais longe não pode ir a Lógica, faltando-lhe uma pedra de toque, pela qual possa descobrir o erro, que alcance ao conteúdo e não à forma.

A Lógica geral decompõe, pois, em seus elementos toda a obra formal do entendimento e da razão, e os apresenta como princípios de toda apreciação lógica do nosso conhecimento. A esta parte da Lógica pode dar-se o nome de analítica, e é desta sorte a pedra de toque da verdade, ainda que negativa, porque cumpre controlar e julgar segundo as suas regras a forma de todo conhecimento, antes de lhe examinar o conteúdo, para ver se em relação ao objeto contém alguma verdade positiva. Mas como não basta de modo algum para decidir sobre a verdade material (objetiva) do conhecimento, a forma pura do mesmo, por muito que concorde com as leis lógicas, ninguém pode aventurar-se apenas com a Lógica a julgar objetos, nem a afirmar nada, sem ter antes achado, e independentemente dela, manifestações fundadas, salvo pedir em seguida às leis lógicas em uso e encadeamento em um todo sistemático, ou melhor ainda, submetê-los simplesmente a essas leis. Todavia, há alguma coisa de sedutor na posse desta arte precisa que consiste em dar a todos os nossos conhecimentos a forma do entendimento, por vazio e pobre que possa ser o seu conteúdo, que esta Lógica geral que só é um cânon do juízo, converter-se em certo modo em orgânon que utiliza para tirar afirmações objetivas, pelo menos aparentemente, cometendo assim um verdadeiro abuso. Tomada a Lógica geral por orgânon, tem o nome de Dialética.

Por diferente que seja a significação dada pelos antigos a essa palavra da nossa, pode-se, sem embargo, deduzir do uso que realmente faziam, que a Dialética para eles era só a Lógica da aparência; quer dizer, uma arte sofistica, própria para dar à sua ignorância e aos seus artifícios preconcebidos o verniz da verdade, tratando de imitar o método fundamental que prescreve a Lógica em geral e auxiliados pela Tópica para dar curso às mais vãs alegações. Mas convém repetir, e é uma advertência que tanto tem de segura quanto de útil, que a Lógica geral, considerada como orgânon, é sempre uma Lógica de aparência, quer dizer, Dialética.

Porque como nos não ensina nada sobre o conteúdo do conhecimento, e só se limita a expor as condições formais da concordância do conhecimento com o entendimento, condições que, por outro lado, são por completo indiferentes aos objetos, resulta que a pretensão de servir-se desta Lógica como de instrumento (orgânon) para estender e aumentar os seus conhecimentos só pode conduzir a uma pura parolagem, pela qual se afirma ou se nega aquilo que se deseja com a mesma aparência de razão. Tal ensinamento está totalmente em oposição à dignidade da Filosofia. Por isso, é justo aplicar o nome de Dialética à aparência dialética. Neste sentido é que aqui a compreendemos.


IV – Divisão da Lógica transcendental em analítica e Dialética transcendental

Na Lógica transcendental, nós isolamos o entendimento (como na Estética transcendental isolamos a sensibilidade), e só tomamos do nosso conhecimento a parte do pensamento que só tem sua origem no entendimento. Mas há antes, no uso deste conhecimento puro, uma condição que se supõe a saber: que os objetos a que possa aplicar-se nos tenham sido dados na intuição, porque sem intuições carece de objetos todo o nosso conhecimento e está inteiramente vazio.

A parte da Lógica transcendental que expõe os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios sem os quais nenhum objeto em geral pode ser pensado, é a Analítica transcendental. Ela é ao mesmo tempo uma Lógica da verdade.

Com efeito, nenhum conhecimento pode estar em contradição com esta Lógica sem logo perder todo o seu conteúdo, quer dizer, toda relação com – algum objeto, por conseguinte, toda verdade.

Mas como é muito atraente, muito sedutor servir-se desses conhecimentos e princípios puros do entendimento sem consideração à experiência, ou mesmo saindo dos limites da experiência, única que nos pode fornecer a matéria à qual se aplicam estes conceitos puros, o entendimento corre o risco de fazer, por meio de raciocínios vãos, um uso material dos princípios simplesmente formais do entendimento puro, e de pronunciar indistintamente sobre objetos que nos não são dados e que talvez não o possam ser de nenhuma maneira.

Se a Lógica, pois, não deve ser mais do que um campo que só serve para julgar o uso empírico dos conceitos do entendimento, é um verdadeiro abuso querer fazê-la passar por um orgânon com uso universal e ilimitado e aventurar-se, com apenas o entendimento puro, a emitir julgamentos sintéticos sobre os objetos em geral e decidir dizer algo sobre eles. É neste caso que o uso do entendimento puro é dialético.

A segunda parte da Lógica transcendental deve, pois, ser uma crítica desta aparência dialética; e se porta o título de Dialética transcendental, não é como arte de suscitar dogmaticamente essa aparência (arte, por infelicidade, muito difundida da fantasmagoria filosófica), mas como crítica do entendimento e da razão em seu uso hiperfísico, crítica tendo por fim descobrir a falsa aparência que cobre suas vãs pretensões, e de limitar esta ambição que se vangloria de achar e estender o conhecimento unicamente por meio de leis transcendentais, e julgar e controlar somente o entendimento puro e a premuni-lo contra as ilusões sofísticas.

RETORNAR AO ÍNDICE DE CRÍTICA DA RAZÃO PURA