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sábado, maio 27, 2006

ELOGIO À LOUCURA - Parte 05 - Erasmo de Rotterdam

Se, finalmente, pudésseis observar, do mundo da lua, como o fez Menipo, as inúmeras agitações dos mortais, decerto acreditaríeis estar vendo uma densa nuvem de moscas ou de pernilongos brigando, insidiando-se, guerreando-se, invejando-se, espoliando-se, enganando-se, fornicando-se, nascendo, envelhecendo, morrendo. Não podeis sequer imaginar os horrores e as revoluções com que enche a terra esse animalzinho, tão pequeno e de tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem.


Quantas vezes um rápido turbilhão guerreiro ou pestífero basta para subtrair e dizimar num momento muitos milhares de homens! Mas, eu própria seria profundamente estúpida e mereceria que Demócrito se risse de mim a valer, se pretendesse descrever todas as extravagâncias e loucuras do vulgo. Passemos, pois, a falar dos que conservam, entre os homens, uma aparência de sabedoria e possuem, como dizem eles esse ramo de ouro de Virgílio.


Entre esses, ocupam o primeiro posto os gramáticos, ou sejam os pedantes. Essa espécie de homens seria decerto a mais miserável, a mais aflita, a mais malquista pelos deuses, se eu não tivesse o cuidado de mitigar os incômodos de tal profissão com gêneros especiais de loucura. Não estão eles sujeitos apenas às cinco pragas e flagelos do epigrama grego, mas ainda a seiscentos outros. Sempre famélicos e sujos nas suas escolas, ou melhor, nas suas cadeias ou lugares de suplícios e de tormentos, no meio de um rebanho de meninos, envelhecem de fadiga, tornam-se surdos com o barulho, ficam tísicos com o fedor e a imundície. No entanto, quem o diria? Graças a mim, os pedantes se julgam os primeiros homens do mundo. Não podeis imaginar o prazer que experimentam fazendo tremer os seus tímidos súditos com um ar ameaçador e uma voz altissonante. Armados de chicote, de vara, de correia, não fazem senão decidir o castigo, sendo ao mesmo tempo partes, juizes e carrascos. Parecem-se mesmo com o burro da fábula, o qual, por ter às costas uma pele de leão, julgava-se tão valoroso como este. A sua imundície afigura-se-lhes asseio; o fedor serve-lhes de perfume; e, acreditando-se reis em meio à sua miserabilíssima escravidão, não desejariam trocar as próprias tiranias pelas de Falaris ou de Dionísio (79). O que, sobretudo, contribui para torná-los felizes é a idéia que fazem da própria erudição. Embora não façam senão meter palavras insignificantes e insulsas frivolidades na cabeça das crianças confiadas aos seus cuidados — santo Deus! — consideram um nada diante deles os Palêmones e os Donatos (80). Nem mesmo sei com que meios conseguem lisonjear as estúpidas mães e os idiotas pais dos alunos, ao ponto de serem realmente considerados como os ilustres homens que eles próprios se inculcam. Acrescentemos a isso outro gênero de prazer por eles experimentado toda vez que conseguem descobrir, num velho papelucho todo sujo e comido de traças, o nome da mãe de Anquises ou alguma palavra geralmente desconhecida, — bubsequam, por exemplo, bovinatorem, manticulatorem — ou quando têm a sorte de encontrar um pedaço de lápide antiga, na qual se encontrem caracteres truncados. Ah! por Júpiter imortal! que tripúdio, que triunfo, que aplausos! Não foi certamente maior a alegria de Cipião ao subjugar a África, nem a de Dario ao conquistar a Babilônia. É indizível a alegria experimentada por esses pedantes, quando, ao lerem de porta em porta os seus versos gelados e insulsos, encontram por acaso algum admirador. Logo se julgam novos Virgílios e não sei se se gabam de que a alma de Marão lhe tenha passado pelo cérebro. Oh! como é bonito vê-los trocar, entre si, elogio por elogio, admiração por admiração, lisonja por lisonja! Se acontece que um homem da arte erra em alguma sintaxe e outro mais penetrante do que ele o percebe — santo Deus! — que cenas, discussões, que injúrias, que invectivas!


A propósito de gramática, quero contar-vos uma bonita história: a história é verídica e, se eu estiver mentindo, quero ter todos os gramáticos contra mim (vede só que terrível declaração!). Conheço um homem de sessenta anos que conhece perfeitamente o grego, o latim, as matemáticas, a filosofia, a medicina. Pois seríeis capazes de advinhar com que se preocupa esse sábio universal, há uns vinte anos? Tendo abandonado todos os estudos, dedica-se exclusivamente à gramática, pondo o cérebro num tormento contínuo. Só ama a vida para ter tempo de dirimir algumas dificuldades dessa importante arte, e morreria satisfeito se descobrisse um método seguro de distinguir bem as oito partes do discurso, coisa que, a seu ver, não conseguiram com perfeição nem os gregos nem os latinos. Bem vedes que é uma questão de suma importância para o gênero humano. Com efeito, não é mesmo uma miséria estar sempre correndo o risco de tomar uma conjunção por advérbio? Um tal equívoco mereceria uma guerra cruenta.


Quero, agora, observar-vos que há mais gramáticas do que gramáticos: só Aldo, um dos meus favoritos nesse gênero, publicou cinco. Pois bem: o meu cabeçudo estuda-as todas, mesmo quando escritas num estilo bárbaro e insuportável; analisa-as todas, da primeira até à última, causando profunda inveja aos que escrevem tão mal sobre o assunto e torturado sempre pela dúvida de que possam roubar-lhe a glória e o fruto de suas longas fadigas. Que vos parece esse ridículo sábio? Devemos chamá-lo de louco ou delirante? Chamai-o do que quiserdes, desde que concordeis que é graças a mim que esse animal sobrecarregado de misérias anda sempre tão satisfeito, tão orgulhoso de si mesmo e da sua sorte, a qual ele não trocaria pela dos mais ricos e poderosos reis da terra.


Já os poetas não me devem tanto, não porque não sejam igualmente loucos, mas porque têm o direito de ser membros ex professo do meu partido. Há muito tempo que se diz que “os poetas e os pintores formam uma nação livre”. Os poetas fazem consistir toda a sua arte em impingir lorotas e fábulas ridículas para deleitar os ouvidos dos tolos. Isso não impede que, apoiados nessas ridicularias, se gabem de obter uma divina imortalidade e ainda a prometam aos outros. O amor próprio e a adulação são os seus conselheiros indivisíveis, e eu não tenho adoradores mais fiéis nem mais constantes do que eles.


Os oradores também pertencem à minha seita. Devo, porém confessar-vos que não são os meus súditos mais fiéis, pois se assemelham, até certo ponto, aos filósofos. Apesar disso, além de serem igualmente cheios de amor próprio e de vaidade, não deixam de ser fecundos em frivolidades, sendo que os mais célebres chegaram a escrever a sério extensos tratados sobre a maneira de pilheriar. O autor, pouco importa o nome, que dedicou a Herênio a arte de dizer, inclui a loucura entre várias espécies de facécias. O próprio Quintiliano, esse príncipe dos retóricos, compôs sobre o riso um capítulo mais volumoso do que a Ilíada, de Homero. Segundo esse escritores, a loucura tem uma força maior do que a razão, porque, muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com uma chacota. Finalmente, eu não desejaria ser a Loucura, se a arte de provocar o riso com gostosas piadas não fosse exclusivamente minha.


Outra espécie de pessoas mais ou menos da mesma laia é constituída pelos que ambicionam uma fama imortal publicando livros. Todos esses escritores têm parentesco comigo, sobretudo os que só publicam coisas insípidas. Quanto aos autores que só escrevem para poucos, isto é, para pessoas de fino gosto e perspicazes, que não recusam o juízo de Pérsio e de Lélio, confesso-vos ingenuamente que merecem mais compaixão do que inveja. Imersos numa contínua meditação, pensam, tornam a pensar, acrescentam, emendam, cortam, tornam a pôr, burilam, refundem, fazem, riscam, consultam, e, nesse trabalho, levam às vezes nove e dez anos, de acordo com o preceito de Horácio, antes do manuscrito ser impresso. Oh! como me causam piedade tais escritores! Nunca estando satisfeitos com o seu trabalho, que recompensa podem esperar? Ai de mim! um pouco de incenso, um reduzido número de leitores, um louvor incerto. Mas, respondei-me francamente: compensarão essas tênues bagatelas o sacrifício do sono, mais doce do que tudo, da tranqüilidade, dos prazeres, numa palavra, de todas as doçuras da vida? É preciso acrescentar ainda que esses sonhadores que andam em busca de imortalidade arruinam a saúde, tornam-se pálidos, magros, ramelentos e, às vezes, até cegos. São sempre miseráveis, invejados, não têm prazer algum e, como resultado, só conseguem apressar a velhice e a própria morte. Malgrado tudo isso, o nosso sábio considera suficiente, como remédio a tantos males, a aprovação de um ou dois ramelentos da sua espécie.


Mas, falemos, agora, de um autor que escreva sob os meus auspícios e do qual seja eu a Minerva. Não conhecendo a meditação, nem a tortura do cérebro, nem as vigílias, escreve tudo o que sonha, tudo o que lhe vem à cabeça. Tudo lhe parece surpreendente e divino. A pena mal pode acompanhar a velocidade da imaginação, e dos pensamentos. Não dispendendo mais do que um pouco de papel, escreve um mundo de disparates e de impertinências, convencido de que, publicando bobagens, grangeará mais facilmente os aplausos da maioria, isto é, de todos os tolos e de todos os ignorantes. E quem poderá negar que esse homem seja verdadeiramente feliz? Responder-me-eis que, assim parecendo, é preciso renunciar completamente à esperança de ser aplaudido pelos verdadeiros doutos! Bolas! que grande sacrifício! Raramente sucede que esses críticos sábios e requintados dêem importância ao meu autor. Mas, mesmo admitindo que todos eles o lessem, seria igualmente dispensável o seu sufrágio para secundar o dos tolos e ignorantes, que representam a opinião de quase todo o gênero humano. Poreis em dúvida essa verdade?


Compreendem-na ainda melhor os plagiários (81) que com suas facilidades se apropriam das obras alheias, gozando da glória que aqueles dos quais eles a roubaram conseguiram com imensa dificuldade. Não ignoram esses impudentes que, mais dia menos dia, será descoberto o furto, mas, em compensação, esperam aproveitar-se dele por algum tempo. É um prazer doido ver como se pavoneiam quando elogiados; quando, ao passar por um lugar, são apontados e ouvem dizer:
— Olhe, aquele ali é um homem verdadeiramente admirável; quando vêem seus livros bem juntinhos e bem expostos na loja de algum livreiro. Seus nomes são lidos no alto de cada página, e são no mínimo três todos estrangeiros, parecendo caracteres mágicos. Esses nomes — por Júpiter imortal! — não têm significação alguma, mas não deixam, em substância, de ser verdadeiros nomes! Considerando-se, além disso toda a vastidão da terra, pode dizer-se que pouquíssimos são que os louvam, não sendo muito diverso do dos ignorantes o gosto dos sábios. Costuma também acontecer, freqüentemente, que esse nomes são inventados e tomados de empréstímo aos antigos. Há, por exemplo, os que gostam de se chamar Telêmaco, outros Esteleno, outro Laerte, outros Polícrates, outro Trasímaco, etc. Os nossos plagiários sentem-se orgulhosos de fazer reviver esses nomes mortos e adotá-los, mas fariam bem, igualmente, se se chamassem camaleões, abóboras, etc., e, segundo o uso de alguns filósofos, dessem aos seus livros os títulos de A ou B. É engraçadíssimo ver essas azêmolas incensarem-se entre si nas letras, nas poesias e nos elogios. — Venceste Alceu (82) — diz um. — E vós, Calímaco (83) — responde o outro. — Eclipsastes o orador romano. — E vós superastes o divino Platão. — Às vezes, esses generosos campeões injuriam-se reciprocamente, a fim de aumentarem pela emulação a própria fama. Enquanto isso, o público fica suspenso, sem saber que partido tomar durante a polêmica. Mas, em geral, acontece que os bravos antagonistas fazem prodígios, merecendo ambos os louros da vitória e as honras do triunfo. No entanto, vós, sábios, vos rides dessas belas coisinhas e as considerais como verdadeiras loucuras. E quem poderá dizer que não tendes razão? Não podeis mesmo negar que somente eu faço a felicidade dos maus escritores e dos plagiários, que decerto não trocariam os seus triunfos pelos dos Alexandres ou dos Cipiões. Mas, acreditarão esses doutos, que eu vejo rir tão gostosamente, zombando da loucura alheia, que não me devem também alguma obrigação? Se assim é, fiquem certos de que ou são cegos ou miseravelmente ingratos. Passemos, pois, em revista as profissões dos doutos.


Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande conceito da sua arte. Ora, para vos ser franca, a sua profissão é, em última análise, um verdadeiro trabalho de Sísifo (84). Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime o laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é mais difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência.


Podemos unir a esses, com toda a honra, os dialéticos e os sofistas, que fazem mais barulho do que todo o bronze dodôneo (85), sendo que cada um deles poderia superar em tagarelice mais de vinte mulheres, mesmo dentre as que costumam distinguir-se pelo falatório. Não obstante, ainda seria de desejar que não tivessem outro defeito a não ser o de falar demais; mas, por desgraça nossa, são sempre discussões de lana-caprina, e, à força de discutir para sustentar a verdade (como pretendem eles), perdem de vista, o mais das vezes, a própria verdade. Esses eternos discutidores estão sempre contentes consigo mesmos e, armados de três ou quatro silogismos, sempre dispostos a desafiar para a controvérsia quem quer que seja e sobre qualquer argumento. A obstinação serve-lhes de espada, invencível, pois não cedem nunca, ainda mesmo que tivessem de medir-se com um Estentor (86).


Seguem-se-lhes, imediatamente, os veneráveis filósofos, respeitáveis pela barba e pela túnica. Gabam-se de ser os únicos sábios e acreditam que todos os outros homens não passem de sombras móveis. Rasguemos esse véu de orgulho e de presunção, e vejamos o que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos loucos: quem poderá conter o riso ao ouvi-los sustentar seriamente a infinidade dos mundos? O sol, a lua, as estrelas, todos esses globos são por eles conhecidos tão bem como se os tivessem medido palmo a palmo ou com um fio. Sem duvidar de nada, eles vos dizem a causa do trovão, dos ventos, dos eclipses e de todos os outros mistérios físicos. Na verdade, ao ouvi-los falar com tanta convicção, qualquer os julgaria membros do grande conselho dos deuses ou testemunhas oculares da natureza quando tudo saiu do nada. Mas, a despeito disso, a natureza, essa hábil produtora do universo, parece zombar das suas conjecturas. Basta, com efeito, refletir-se sobre a estranha diversidade dos seus sistemas, para se dever confessar que eles não têm nenhuma idéia segura, pois que, enquanto se gabam de saber tudo, não estão de acordo em nada. Os filósofos nem ao menos se conhecem, porquanto, ao tentarem elevar-se às mais sublimes especulações, caem num buraco com que não contavam e quebram a cabeça contra uma pedra. Estragando a vista na contemplação meticulosa da natureza e com o espírito sempre distante, vangloriam-se de distinguir as idéias, os universais, as formas separadas, as matérias primas, os quid, os ecce, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só poderiam distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince.


Em nenhuma outra ciência se despreza tanto o vulgo profano como nas matemáticas, que consistem em triângulos, quadrados, círculos e outras figuras geométricas semelhantes, que se sobrepõem uma às outras, confundindo tudo como um labirinto. Por fim, atordoam os idiotas com diversas letras dispostas como um exército em ordem de batalha e subdivididas em várias companhias.


Mas, não esqueçamos os astrólogos, aos quais o céu serve de biblioteca e os astros servem de livros. Graças a esse estudo, compreendem tudo muito bem e revelam o futuro, predizendo maiores prodígios do que os magos. E o mais bonito é que ainda têm a fortuna de encontrar crédulos.


Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria e tão grande é o perigo de tocar em semelhante corda. Esses intérpretes das coisas divinas estão sempre prontos a acender-se como a pólvora, têm um olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos muito perigosos. Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como ursos furibundos, mordem-vos e não vos largam senão depois de vos terem obrigado a fazer a vossa palinódia com uma série infinita de conclusões; mas, se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges. E, mostrando essa cólera, chamando de herege, de ateu, conseguem fazer tremer os que não concordam com eles. Embora não haja ninguém que, tanto como eles, dissimule os meus favores, não é menos verdadeiro que me devem muito. Eis porque impus ao meu amor próprio favorecê-los mais do que a todos os outros mortais, e de fato são eles os meus maiores prediletos. É por isso que, do alto da sua elevação e à maneira de tantos anjos que habitam o terceiro céu, consideram o resto dos homens como outros tantos animais bajuladores e têm piedade deles. Cercados de uma série de magistrais definições, conclusões, corolários, proposições explícitas, em suma, de tudo o que compõe a malícia da escola sacra, usam de tantos subterfúgios que o próprio Vulcano não conseguiria embrulhá-los, mesmo empregando a rede de que se serve para mostrar aos deuses os seus cornos nascentes. Não há nó que esses senhores não saibam desfazer de um golpe com a mais que tenédia bipene do distinguo: bipene formada de todos os novos vocábulos sonoros e empolados que nasceram no seio da sutileza escolástica.


Observemos os nossos oráculos em meio às suas mais sublimes funções; observemo-los, repito, a interpretar a seu talante os ocultos mistérios da salvação e por que motivo foi criado e ordenado o mundo. Trata-se de saber por que canais passou à posteridade a mancha do pecado original? Trata-se da Encarnação e da Eucaristia? Ah! tais mistérios são muito batidos e dignos apenas de teólogos noviços! Eis as questões dignas dos grandes mestres, dos mestres iluminados, como dizem eles, os quais, ao tratar desses argumentos, se agitam e tomam fôlego: — Houve algum instante na geração divina? — Jesus Cristo tem muitas filiações? — É possível esta proposição: — Deus padre odeia o seu filho? — Ter-se-ia Deus unido pessoalmente a uma mulher, ao diabo, a um burro, a uma abóbora, a uma pedra? — No caso de Deus se ter unido à natureza de uma abóbora, como fez com a natureza humana, de que maneira essa beata e divina abóbora teria pregado, feito milagres e sido crucificada? — Como teria ela consagrado São Pedro, se este tivesse dito missa quando o corpo de Jesus Cristo estava pregado na cruz? — Poder-se-ia dizer, então, que o Salvador era um verdadeiro homem? — Será permitido comer e beber depois da ressurreição? (Essa dúvida existe no íntimo dos nossos reverendos, que muito satisfeitos ficariam com uma resposta a essa pergunta).


Mas, não consiste somente nisso o armazém teológico; há ainda inúmeras outras argúcias, não menos frívolas e sutis do que as supracitadas. Tais são, por exemplo, o instante da geração divina, as noções, as relações, as formalidades, os quid, os ecce, e tantas outras quimeras de natureza semelhante. Duvido que alguém seja capaz de descobri-las, a não ser que tenha uma vista tão penetrante que lhe permita distinguir, através de densas nuvens, objetos inexistentes.


Acrescentemos a tudo isso a sua moral estranha e contraditória, diante da qual são um nada os paradoxos estóicos. Sustentam, por exemplo, que concertar o sapato de um pobre em dia de domingo é um pecado maior do que estrangular mil pessoas; que seria preferível deixar cair o mundo no nada de onde veio a proferir a menor mentira, etc. Além disso, contribuem para sutilizar ainda mais essas sutilíssimas sutilezas todos os diversos subterfúgios dos escolásticos; e assim é que seria menos difícil sair de um labirinto do que desembaraçar-se do embrulho dos realistas, dos noministas, dos tomistas, dos albertistas, dos occanistas, dos scotistas, — ai de mim! já me falta a respiração, e, contudo, só citei as principais seitas da escola, não falando de muitíssimas outras. Em todas essas facções, são tantas as erudições e tantas as dificuldades, que, se os próprios apóstolos descessem à terra e fossem obrigados a discutir com os teólogos modernos sobre essas sublimes matérias, sou de opinião que teriam necessidade de um novo espírito totalmente diverso daquele que, em seu tempo, lhes dava a possibilidade de falar. São Paulo tinha fé, mas não deu uma definição da fé bastante magistral quando disse: A fé é a substância da coisa esperada e o argumento da que não aparece. No mesmo apóstolo ardia o fogo da caridade, mas ele não se mostrou bom lógico ao omitir a definição e a divisão dessa virtude no capítulo XIII da sua primeira epístola aos coríntios. Os apóstolos consagravam com devoção e com piedade o sacramento da Eucaristia: se tivessem, porém, de explicar como Deus pode passar de um lugar para outro por meio da consagração; como se dá a transubstanciação; como um mesmo corpo pode encontrar-se ao mesmo tempo em vários lugares; que diferença existe entre o corpo de Jesus Cristo no céu, na cruz e na Eucaristia; em que momento se verifica a transubstanciacão, de vez que a fórmula sacramental, como dizem eles, sendo composta de sílabas e de palavras, só pode ser pronunciada sucessivamente, — creio eu que, se esses primeiros teólogos do cristianismo tivessem de dirimir tais dificuldades, teriam necessidade da agudeza dos scotistas, que são verdadeiros Mercúrios na arte de argumentar e definir. Tiveram os apóstolos, é verdade, a sorte de conviver com a mãe de Jesus, mas nenhum deles a conheceu tão bem como os nossos teólogos, que provaram geometricamente ter sido a Virgem fecunda preservada da mancha do pecado original. São Pedro recebeu as chaves das próprias mãos do Homem-Deus, sendo de supor-se que este não tivesse tido a intenção de colocá-las em más mãos; mas, não sei se o beato pescador conhecia bem o significado daquelas místicas chaves. Nós, porém, sabemos, com certeza, que ele nunca perguntou a Deus seu mestre como poderia um grosseiro e ignorante pescador ter as chaves da ciência. Os apóstolos batizavam continuamente, mas, apesar disso, nunca ensinaram a causa formal, material, eficiente e final do batismo, nem fizeram menção do caráter delével e indelével do mesmo. Esses fundadores da religião cristã adoravam a Deus, mas a sua adoração apoiava-se neste princípio fundamental do evangelho: Deus é um espírito puro e é preciso adorá-lo em espírito e verdade. Parece, igualmente, não ter sido revelado aos apóstolos que o culto, nas escolas chamado latria, possa prestar-se tanto a Jesus Cristo em pessoa como às suas imagens rabiscadas na parede com carvão, bastando que representem o filho de Deus dando a bênção com os dois dedos, índice e médio, da mão direita levantada, e com a cabeça ornada por uma longa cabeleira e um tríplice círculo de raios. Mas, como poderiam os apóstolos possuir tão grande e salutar erudição? Eles não encaneceram no fatigante estudo das ciências físicas e metafísicas de Aristóteles e dos scotistas. Os apóstolos costumam falar da graça, mas não distinguem a graça gratuita da graça gratificante; exortam às boas obras, mas não distinguem a obra operante da obra operada; inculcam a caridade, mas não separam a infusa da adquirida, além de não explicarem se essa amável e divina virtude é substância ou acidente, criada ou incriada; detestam o pecado, mas eu quisera morrer se eles já foram capazes de definir cientificamente o que chamamos de pecado, a não ser que tenham sido inspirados pelo espírito dos scotistas. Se São Paulo, pelo qual devemos julgar todos os outros apóstolos, tivesse tido uma boa teoria do pecado, teria ele condenado com tanta insistência as polêmicas, as contendas, as querelas, as discussões em torno de palavras? Digamos, pois, com franqueza, que São Paulo não conhecia as argúcias e as qualidades espirituais que distiguem os modernos, tanto mais quanto as controvérsias surgidas na primitiva Igreja não passavam de pueris mesquinharias diante do refinamento dos nossos mestres, que, em matéria de sutileza, ultrapassaram de muito o próprio sofista Crisipo (87). — Façamos, porém, justiça à sua modéstia, pois não condenam o que os apóstolos escreveram com pouco acerto e precisão, mas se limitam a interpretá-lo de modo favorável, para usar de certa consideração para com a venerável antigüidade e para com o apostolado. Não seria, aliás, razoável pretender que os apóstolos tratassem dessas difíceis matérias, quando o seu divino mestre nunca lhes disse uma palavra a respeito.


Já não têm a mesma consideração para com os Crisóstomos, os Basílios, os Jerônimos, os pais da Igreja, não encontrando dificuldade em pôr em certas passagens de suas obras: Isto não foi recebido. É preciso considerar que esses antigos doutores deviam refutar os filósofos pagãos e, naturalmente, os obstinadíssimos judeus: faziam-no, porém, mais pelo exemplo e pelos milagres do que com argumentos, tanto mais quanto os primitivos inimigos do cristianismo eram de gênio tão limitado que nunca poderiam conceber um único princípio de Scot. Mas, adiantem-se agora, se quiserem; e os incrédulos, os pagãos, os judeus, os hereges, todos, todos sem exceção, deverão converter-se e ceder à forca das ínfimas sutilezas dos teólogos modernos. É preciso ser estúpido ou impudente para não conhecer o valor das suas argúcias ou desprezá-las. Acho prudente aconselhar a rendição ao primeiro assalto ou a aceitação do desafio quando houver igualdade de armas. Mas, nesse caso, seria o mesmo que lançar um mago contra um mago, ou empregar uma espada encantada contra outra espada encantada. Seria, em suma, o mesmo que tecer o pano de Penélope (88).


A propósito de combate, parece-me que os cristãos deveriam mudar as suas tropas na guerra movida contra os infiéis. Se em lugar da grosseira e material soldadesca, que há tanto tempo empregam inutilmente nas cruzadas, expedissem, contra os turcos e os sarracenos, os clamorosos scotistas, os obstinados occanistas, os invencíveis albertistas e toda a milícia dos sofistas, quem poderia resistir ao assalto dessas tropas coligadas? Bem ridícula seria, a meu ver, uma tal batalha, e inteiramente nova a vitória. Quem seria tão frio ao ponto de não acender-se ao fogo das disputas? Quem seria tão poltrão ao ponto de não acorrer aos golpes dessas esporas? Quem pode gabar-se de ter tão boa vista que não se perturbe com o esplendor dessas sutilezas?


Pensais que eu esteja brincando? Não vos iludais. Uma tal armada seria ainda menos numerosa do que se supõe, porque, entre os próprios teólogos, existem homens de uma doutrina sólida e judiciosa, aos quais causam náuseas essas frívolas e impertinentes argúcias, e os há ainda de uma consciência tão reta que experimentam por elas horror, como que por uma espécie de sacrilégio. — Que horrível heresia! — exclamam eles. — Em lugar de adorarem a impenetrável obscuridade dos nossos mistérios (que justamente por isso são mistérios), pretendem explicá-los. E de que maneira? Com uma linguagem imunda e argumentos não menos profanos que os dos gentios. Arrogam-se insolentemente o direito de definir e discutir verdades incomprensíveis, profanando assim a majestade da teologia com as palavras e sentenças mais insulsas e triviais.


No entanto, esses insignificantes faladores envaidecem-se com sua vazia erudição e experimentam tanto prazer em ocupar-se dia e noite com essas suavíssimas nênias que nem tempo lhes sobra para ler ao menos uma vez o evangelho e as cartas de São Paulo. E o mais bonito é que, enquanto assim cacarejam em suas escolas, imaginam-se os defensores da Igreja, que cairia na certa, se cessassem um momento de sustentá-la com a forca dos seus silogismos, exatamente como Atlante, segundo os poetas, sustenta o céu com as costas.


Contam ainda os nossos discutidores com outro grande motivo de felicidade. As escrituras são, em suas mãos, como um pedaço de cera, pois costumam dar-lhes a forma e o significado que mais correspondam ao seu gênio. Pretendem que as suas decisões acerca das sagradas escrituras, uma vez aceitas por alguns outros escolásticos, devam ser mais respeitadas do que as leis de Solon e antepostas aos decretos dos papas. Erigem-se em censores do mundo e, se alguém se afasta um pouquinho das suas conclusões, diretas ou indiretas, obrigam-no logo a se retratar, sentenciando como oráculos: Essa proposição é escandalosa, esta aqui é temerária, aquela cheira à heresia, aquela outra soa mal. Dessa forma, nem o evangelho, nem o batismo, nem Paulo, nem Pedro, nem Jerônimo, nem Agostinho, nem o próprio Tomás de Aquino, embora aristotélico fanático, saberiam fazer um ortodoxo sem o beneplácito desses bacharéis, tão necessário é a sua sutileza para bem decidir da ortodoxia. Quem teria suspeitado que não fosse cristão alguém que sustentasse serem igualmente boas as duas proposições: Sócrates, corres e Sócrates corre, se os teólogos de Oxford não tivessem querido fazer sabê-lo, fulminando as duas proposições condenáveis? Como se teria purgado a Igreja de tantos erros, se não tivesse podido distingui-los antes de ter sido aplicado o grande sigilo da universidade às proposições condenadas?


Não considerareis felicíssimas essas pessoas? Mas, prossigamos ainda um pouco. Quantas lindas lorotas não vão esses doutores impingindo a respeito do inferno? Conhecem tão bem todos os seus apartamentos, falam com tanta franqueza da natureza e dos vários graus do fogo eterno, e das diversas incumbências dos demônios, discorrem, finalmente, com tanta precisão sobre a república dos danados, que parecem já ter sido cidadãos da mesma durante muitos anos. Além disso, quando julgam conveniente, não se poupam o trabalho de criar ainda novos mundos, como o mostraram formando o décimo céu, por eles denominado empíreo e fabricado expressamente para os beatos, sendo mais do que justo que as almas glorificadas tivessem uma vasta e deliciosa morada para aí gozarem de todo o conforto, divertindo-se juntas e até jogando a péla quando tivessem vontade.


Os nossos finos pensadores têm a cabeça tão cheia, tão agitada por essas bobagens, que decerto não estava mais cheia a cabeça de Júpiter quando, ao querer parir Minerva, implorou o socorro do machado de Vulcano. Não vos admireis, pois, ao vê-los aparecer nas defesas públicas com a cabeça cuidadosamente cingida com tantas faixas, pois não fazem senão procurar impedir, por meio desses respeitáveis liames, que ela arrebente de todos os lados em virtude da porção de ciência de que o seu cérebro se acha sobrecarregado. Não posso deixar de rir (podeis, agora, ver se não se trata de um grande argumento, pois que a Loucura raramente ri), não posso deixar de rir ao escutar essas célebres personagens, que nem sequer falam, mas balbuciam. Só se reputam teólogos quando perfeitos senhores de sua bárbara e porca linguagem, que só pode ser entendida pelos da arte; gabam-se disso, chamando-lhe agudeza e dizendo com arrogância que não falam para o vulgo profano; e acrescentam que a dignidade das santas escrituras não permite subordiná-las às regras gramaticais. Admiremos a majestade dos teólogos! Somente a eles é permitido falar incorretamente e, quando muito, se concede que o vulgo lhes dispute essa prerrogativa. Finalmente, os teólogos se colocam imediatamente depois dos deuses e quando, por uma espécie de religiosa veneração, se ouvem chamar nossos mestres, imaginam ver nesse título alguma coisa daquele inefável nome composto de seis letras e tão adorado pelos judeus. Nessa presunção, querem que se escreva MESTRE NOSSO, com letras maiúsculas, sendo esse título tão misterioso que, se em latim se modificasse a ordem das duas palavras e se pusesse o Nosso antes do Mestre, tudo estaria perdido, ou pelo menos sofreria um grande vexame a majestade do nome teológico.


Depois desses, segue-se imediatamente a espécie melhor do gênero animal, isto é, os que vulgarmente se chamam monges ou religiosos. Seria, porém, abusar grosseiramente dos termos chamá-los, ainda hoje, por tais nomes. Com efeito, por via de regra, não há pessoas mais irreligiosas do que essas e, como a palavra monge significa solitário, parece-me não se poder aplicá-la mais ironicamente as pessoas que se encontram em toda parte, acotovelando-se a cada passo. Sem o meu socorro, que seria desses pobres porcos dos deuses? São de tal forma odiados que, quando por acaso são vistos, costuma-se tomá-los por aves de mau agouro. Isso não impede que cuidem escrupulosamente da sua conservação e se considerem personagens de alta importância. A sua principal devoção consiste em não fazer nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem dar-se ao trabalho de entender os salmos, já se julgam demasiados doutos quando lhes conhecem o número, e, quando os cantam em coro, imaginam enlevar o céu com a asnática melodia. Entre esse variegado rebanho, alguns se encontram que se gabam da própria imundície e da própria mendicidade, indo de casa em casa esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada que parecem mais exigir um crédito do que pedir a esmola. Albergues, botequins, carros, diligências, todos, em suma, são por eles importunados, com grande prejuízo dos verdadeiros necessitados. É dessa forma que pretendem ser, como dizem eles, os nossos apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua ignorância, toda a sua grosseria, todo o seu descaramento. Nada mais ridículo do que a ordem exata e precisa que observam em todos os seus atos: tudo é feito por eles a compasso e à medida. Os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a roupa composta de tantas peças, a cinta de tal qualidade e de tal largura, o hábito de tal forma e de tal tamanho, a coroinha de tantas polegadas de diâmetro. Além disso, devem comer a tal hora, tal qualidade e tal quantidade de alimento, dormir somente tantas horas, etc. Ora, todos podem compreender muito claramente que é impossível conciliar tão precisa uniformidade com a infinita variedade de opiniões e de temperamentos. Pois é nessa metódica exterioridade que os monges encontram argumento para desprezar os que eles chamam de seculares. Muitas vezes, dá causa a sérias contendas entre as diferentes ordens, a ponto dessas santas almas que se vangloriam de professar a caridade apostólica se destruírem mutuamente. E porque? Por causa de um cíngulo diverso ou da cor mais carregada da roupa.


Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de penitência, mas evitam que se veja a finíssima camisa que trazem por baixo; outros, ao contrário, trazem externamente a camisa e a roupa de lã sobre a pele. Os mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao verem dinheiro, como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho nem as mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se distinguirem em tudo uns dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus pensamentos. Muito se ofenderiam se lhes dissésseis que obtiveram isto ou mais aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que a enorme variedade de sobrenomes e de títulos não deleite muito os seus ouvidos? Há os que se gabam de chamar-se franciscanos, tronco que se subdivide nos seguintes ramos: os reformados, os menores observantes, os mínimos, os capuchinhos; outros se dizem beneditinos; estes se chamam bernardinos e aqueles de Santa Brígida; outros são de Santo Agostinho; estes se denominam guilherminos e aqueles jacobitas, etc. Como se não lhes bastasse o nome de cristãos. Quase todos confiam tanto em certas cerimônias e em certas tradiçõezinhas humanas, que um só paraíso lhes parece um prêmio muito modesto para os seus méritos. No entanto, Jesus Cristo, desprezando todas essas macaquices, só julgará os homens pela caridade, que é o primeiro dos seus mandamentos. Em vão, tremendo no dia do juízo final, apresentarão eles a Deus um corpo bem nutrido por tudo quanto é peixe; em vão lhe oferecerão o canto dos salmos e os inúmeros jejuns; em vão sustentarão que arrumaram a barriga com uma única refeição; em vão produzirão uma porção de práticas fradescas, capazes de carregar pelo menos sete navios; em vão se gabará este de ter passado sessenta anos sem tocar em dinheiro, a não ser com dois dedos muitos sujos; em vão mostrará aquele o seu hábito tão sórdido que até um barqueiro se recusaria a vesti-lo; em vão se gabará outro de ter vivido cinqüenta e cinco anos sempre encerrado em seu claustro, como uma esponja; em vão aquele fará ver que perdeu a voz de tanto cantar, e este que a longa solidão lhe perturbou o cérebro; em vão dirá um outro que o perpétuo silêncio entorpeceu-lhe a língua. Interrompendo todas essas gabolices (pois do contrário seria um nunca mais acabar), Jesus Cristo dirá: — De que país vem essa nova raça de judeus? Pois não dei aos homens uma lei única? Sim, e somente essa eu reconheço como verdadeiramente minha. E esses malandros não dizem sequer uma palavra a respeito? Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a herança do meu Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à observância da caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as suas pretensas obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu próprio. Procurem, se quiserem, um céu aparte. Mandem construir um paraíso por aqueles cujas frívolas tradições eles preferiram à santidade dos meus preceitos. — Qual não será a consternação de todos eles, ao ouvirem tão terrível sentença e ao verem que se lhes antepõem os barqueiros e os carroceiros? No entanto, a despeito de tudo isso, são sempre felizes com suas vãs esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito da minha bondade para com eles.