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segunda-feira, julho 24, 2006

Crítica da Razão Pura - Kant - Parte Primeira - 07 e 08

CRÍTICA DA RAZÃO PURA - KANT

PARTE PRIMEIRA
DA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDENTAL



7 - Explicação

Contra esta teoria, que admite a realidade empírica do tempo, combatendo a sua realidade absoluta e transcendental, homens doutos formularam-me uma objeção, que me parece ocorra ao comum dos leitores, pouco familiarizados com estes assuntos. Tal é a objeção: há mudanças reais (o que é provado pela sucessão de nossas representações, querendo-se negar os fenômenos externos e suas mudanças); ora, a mudança das representações não é possível senão no tempo; logo, o tempo é qualquer coisa de real.

A resposta não é difícil: aceito todo o argumento. O tempo, não resta dúvida, é qualquer coisa de real: é, com efeito, a forma real da intuição interna. Possui, pois, uma realidade subjetiva em relação à experiência interna: quer dizer, tenho realmente a representação do tempo e de minhas próprias determinações nele.

Conseqüentemente, o tempo não é real como objeto. Mas, se eu mesmo ou um outro ente me pudesse perceber sem esta condição da sensibilidade, estas mesmas determinações que nós nos representamos atualmente como mudanças nos dariam um conhecimento em que não se encon¬trará mais a representação do tempo, nem, por conseguinte, a de mudança, não existiriam. Sua realidade empírica permanece, pois, como condição de todas as nossas experiências. Mas a realidade absoluta não se pode, segundo vimos, conceder ao tempo.

Ele não é mais do que a forma de nossa intuição interna. Se se tira desta intuição a condição especial de nossa sensibilidade, desaparece igualmente o conceito de tempo, porque esta forma não pertence aos objetos mesmos, mas ao sujeito que os percebe.

Porém a causa, pela qual tal objeção é formu¬lada tão concordemente, entre os que nada têm a opor contra a idealidade do espaço, é esta: é que não esperavam poder demonstrar apoditicamente a realidade absoluta do espaço, inibidos, pelo idealismo, segundo o qual a realidade dos objetos exteriores não é suscetível de nenhuma demonstração rigorosa, enquanto que a do objeto do nosso sentido interno (de mim mesmo e de meu estado) lhes parecia imediatamente claro pela consciência.

Aqueles poderiam ser simples aparência; mas este, a seu juízo, é inegavelmente qualquer coisa real. Entretanto, os partidários de tal opinião olvidam que essas duas classes de objetos, sem necessidade de combater sua realidade como representações, pertencem somente ao fenômeno, que tem sempre dois aspectos: um, quando o objeto é considerado em si mesmo (prescindindo da maneira de percebê-lo, cuja natureza permanecerá sendo sempre problemática); outro, quando se considera a forma da intuição deste objeto, forma que não deve ser buscada no objeto em si, mas no sujeito, a quem aparece, e que, não obstante, pertence real e necessariamente ao fenômeno que esse objeto manifesta. São, pois, tempo e espaço duas fontes de conhecimentos, de que podem derivar-se “a priori” diferentes conhecimentos sintéticos, como mostra o exemplo das matemáticas puras, respeito ao conhecimento do espaço e de suas relações.

Eles são, ambos, formas puras de toda intuição sensível que tornam possíveis as proposições sintéticas “a priori”. Mas estas fontes do conhecimento “a priori”, pela mesma razão de que só são simples condições da sensibilidade, determinam o seu próprio limite, enquanto se referem aos objetos, considerados como fenômenos, e não representam coisas em si. O valor “a priori” de ditas fontes se limita aos fenômenos; não tem aplicação objetiva fora dos mesmos.

Esta realidade formal do tempo e do espaço deixa intata a seguridade do conhecimento experimental, porque estamos igualmente certos desse conhecimento, quer essas formas sejam necessariamente inerentes às coisas em si, quer somente à nossa intuição das coisas.

Pelo contrário, aqueles que sustentam a realidade absoluta do espaço e do tempo, quer os tomem como subsistentes por si mesmos, quer como inerentes nos objetos, acham-se em contradição com os princípios da experiência. Se se decidem pelo primeiro e tomam espaço e tempo como subsistentes por si mesmos (partido comumente seguido pelos fisico-matemáticos), têm que admitir necessariamente duas quimeras (espaço e tempo), eternas e infinitas, que só existem (sem que seja algo real) para compreender em seu seio tudo quanto é real.

Aceitando a segunda opinião seguida por alguns metafísicos da natureza, que consiste em considerar tempo e espaço como relações de fenômenos (simultâneos no espaço e sucessivos no tempo), abstraídos da experiência, ainda que confusamente representados nessa abstração, é preciso negar a validade das teorias matemáticas “a priori” das coisas reais (p. ex., no espaço); ou pelo menos sua certeza apoditica, posto que não possa ser esta achada “a posteriori”.

De igual modo, os conceitos “a priori” de espaço e tempo, segundo esta opinião, seriam só criação da fantasia cuja verdadeira fonte deve buscar-se na experiência, porque de suas relações abstraídas se tem valido fantasia para formar algo que contenha o que de geral há nela, ainda que sem as restrições que a natureza lhes tem posto.

Os primeiros têm a vantagem de deixar livre o campo dos fenômenos para as proposições matemáticas; mas essas mesmas condições os embaraçam em extremo quando o entendimento quer sair deste campo.

Os segundos têm neste último ponto a vantagem de que as representações de espaço e tempo não os detêm, quando quer julgar os objetos, não como fenômenos, mas em sua relação com o entendimento; mas não podem nem dar um fundamento das possibilidades dos conhecimentos matemáticos “a priori”, faltando-lhes uma verdadeira intuição objetiva “a priori”, nem tampouco conduzir a uma conformidade necessária as leis da experiência e aquelas asserções.

Em nossa teoria da verdadeira natureza destas duas formas primitivas da sensibilidade ficam resolvidas ambas as dificuldades. Finalmente é óbvio que a Estética transcendental não pode conter mais do que esses elementos, a saber: espaço e tempo, posto que todos os outros conceitos, que pertencem à sensibilidade, mesmo o de movimento que reúne os dois anteriores, implicam algo empírico, porque o movimento supõe a percepção de algo movível.

O espaço considerado em si mesmo não tem nada de movível: o movível deve ser, pois, algo que somente se encontra pela experiência no espaço, e, conseguintemente, um dado empírico. A Estética transcendental não pode tampouco contar entre os seus dados “a priori” o conceito de mudança; porque o tempo mesmo não muda, mas sim algo que existe no tempo. Necessita-se, pois, para isso, a percepção de uma certa coisa e da sucessão de suas determinações, por conseguinte, da experiência.


8 - Observações gerais sobre a Estética transcendental

I – Com o fim de evitar erros e más interpretações neste assunto, devemos explicar claramente nossa opinião sobre a natureza fundamental do conhecimento sensível em geral.

Temos querido provar que todas as nossas in¬tuições só são representações de fenômenos, que não percebemos as coisas como são em si mesmas, nem são as suas relações tais como se nos apresentam, e que se suprimíssemos nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva dos nossos sentidos em geral, desapareceriam também todas as propriedades, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e também o espaço e o tempo, porque tudo isto, como fenômeno, não pode existir em si, mas somente em nós mesmos.

Para nós é completamente desconhecida qual possa ser a natureza das coisas em si, independentes de toda receptividade da nossa sensibilidade. Não conhecemos delas senão a maneira que temos de percebê-las; maneira que nos é peculiar; mas que tão pouco deve ser necessariamente a de todo ser, ainda que seja a de todos os homens.

É a esta maneira de perceber que nos ateremos, unicamente.

Tempo e espaço são as formas puras desta percepção, e a sensação, em geral, a sua matéria. Só podemos conhecer “a priori” as formas puras do espaço e do tempo, quer dizer, antes de toda percepção efetiva, e por isso se denomina intuição pura; a sensação, pelo contrário, é que faz ser o nosso conhecimento “a posteriori”, quer dizer, in¬tuição empírica. Aquelas formas pertencem absoluta e necessariamente à nossa sensibilidade, e qualquer espécie que sejam as nossas sensações; estas podem ser mui diversas.

Por mais alto que fosse o grau de clareza que pudéssemos dar à nossa intuição, nunca nos aproximaríamos da natureza das coisas em si; porque em todo caso só conheceríamos perfeitamente nossa maneira de intuição, quer dizer, nossa sensibilidade, e isto sempre sob as condições de tempo e espaço originariamente inerentes no sujeito.

O mais perfeito conhecimento dos fenômenos que é o único que nos é dado atingir, jamais nos proporcionará o conhecimento dos objetos em si mesmos.

Desnaturam-se os conceitos de sensibilidade e de fenômeno inutilizando e destruindo toda a doutrina do conhecimento, quando se quer que toda a nossa sensibilidade consista na representação confusa das coisas, representação que conteria absolutamente tudo o que elas são em si, ainda que sob a forma de um amontoado de caracteres e representações parciais, que não distinguimos claramente uns de outros.

A diferença entre uma representação obscura e outra clara é puramente lógica, e não se refere ao seu conteúdo.

Sem dúvida, o conceito de direito, empregado pela sã inteligência comum, contém tudo o que a mais sutil especulação pode desenvolver do mesmo, ainda que no uso prático e comum não se tenha consciência das diversas representações contidas nesse conceito. Mas não se pode dizer por isto que o conceito vulgar seja sensível e não designe senão um simples fenômeno; porque o direito não poderia ser um objeto de percepção, pois o seu conceito existe no entendimento e representa uma qualidade (a moral) das ações, que elas possuem em si mesmas.


Pelo contrário, a representação de um corpo na intuição não contém absolutamente nada que propriamente possa pertencer a um objeto em si, mas somente o fenômeno (a manifestação) de alguma coisa e a maneira de como nos afeta.

Ora, esta receptividade de nossa faculdade de conhecer, que se denomina sensibilidade, permanece sempre profundamente distinta do conhecimento do objeto em si, ainda que se pudesse penetrar o fenômeno até o seu âmago. A filosofia leibnitzwolfiana adotou, nas suas indagações sobre a natureza e origem dos nossos conhecimentos, um ponto de vista errôneo, ao considerar como exclusivamente lógica a diferença entre a sensibilidade e o entendimento.

Tal diferença é claramente transcendental, e não se refere só à clareza ou obscuridade, mas também à origem e conteúdo de nossos conhecimentos; de tal sorte que, mediante a sensibilidade, não conhecemos de nenhuma maneira as coisas em si mesmas. Desde o momento em que fazemos abstração de nossa natureza subjetiva, o objeto representado e as propriedades que lhe atribuímos mediante a intuição desaparecem; porque a natureza subjetiva é precisamente quem determina a forma desse objeto como fenômeno.

Por outro lado, sabemos distinguir muito bem nos fenômenos o que pertence essencialmente à intuição dos mesmos, e vale em geral para todo o sentido humano, daquilo que só lhe pertence de modo acidental, e que não vale para toda relação em geral da sensibilidade, mas unicamente para a posição particular ou organização deste ou daquele sentido. Do primeiro conhecimento se diz que representa a coisa em si e do segundo que representa meramente o fenômeno. Porém essa diferença é só empírica. Se se permanece nela (como comumente acontece) e não se considera novamente aquela intuição empírica (conforme deverá suceder) como um puro fenômeno, no qual não se encontra nada que pertença a uma coisa em si, desaparece então a nossa distinção transcendental e cremos conhecer as coisas em si, ainda que nas mais profundas investigações do mundo sensível, só possamos ocupar-nos de fenômenos.

Assim; por exemplo, se dissermos do arco-iris que ele é um simples fenômeno que se mostra na chuva iluminada pelo sol, e da chuva que é uma coisa em si, essa maneira de falar é exata, desde que entendemos a chuva em um sentido físico, quer dizer, como uma coisa que, na experiência geral, é determinada de tal modo e não diversamente, quaisquer que sejam as disposições dos sentidos.

Entretanto, se tomamos esse fenômeno empírico de uma maneira geral, e sem nos ocuparmos de seu acordo com todos os sentidos humanos, perguntarmos se ele representa também um objeto em si (não direi das gotas de chuva, porque são já, como fenômenos, objetos empíricos), a questão da relação entre a representação e o objeto vem a ser transcendental. Não somente essas gotas de chuva são simples fenômenos, mas mesmo a sua forma e até o espaço em que tombam nada são em si; não passam de modificações ou de disposições de nossa intuição sensível.

Quanto ao objeto transcendental, permanece completamente ignorado por nós.

Outra importante advertência de nossa Estética transcendental é que não merece ser recebida somente como uma hipótese verossímil, mas como um valor tão certo e seguro como pode exigir-se de uma teoria que deve servir de orgânon. E para tornar completamente evidente esta certeza, escolhamos um caso que mostre visivelmente o seu valor e possa dar luz ao que já foi dito no número 3.

Suponho que o espaço e o tempo existem em si objetivamente e como condições da possibilidade das coisas em si, uma primeira dificuldade se apresenta. Nós tiramos “a priori” de um e doutro, mas particularmente do espaço, que aqui tomamos, como principal exemplo, um grande número de proposições apodíticas e sintéticas.

Posto que as proposições da Geometria são conhecidas sinteticamente “a priori” e com uma certeza apodítica, pergunto: de onde tomais semelhantes proposições e em que se apóia o nosso entendimento para chegar a essas verdades absolutamente necessárias e universalmente válidas?

Só existem dois meios para elas: os conceitos e as intuições. Tais meios nos são fornecidos “a priori” ou “a posteriori”.

Os conceitos empíricos e o seu fundamento, ou seja, a intuição empírica, nunca podem fornecer-nos outras proposições sintéticas além das empíricas e de que caracterizam todas as proposições da Geometria.

O outro meio restante consistiria em alcançar esses conhecimentos com simples conceitos ou in¬tuições “a priori”; mas resulta que de simples conceitos não se pode chegar a nenhum conhecimento sintético, pois só permitem conhecimentos analíticos. Tomai, por exemplo, a proposição: entre duas linhas retas não pode encerrar-se um espaço e, por conseguinte, não é possível figura alguma; procurai deduzi-la dos conceitos de reta e do número dois. Tomai outro exemplo: uma figura é possível com três linhas retas, e intentai deduzi-la desses mesmos conceitos.

Todos os vossos esforços seriam inúteis, e vos verieis necessitados de recorrer à intuição, que é o que sempre fez a Geometria.

Dai-nos um objeto na intuição; mas de que espécie é essa intuição? É ela pura, “a priori”, ou empírica? Se fosse esta última, nunca poderia provir dela uma proposição universal, e menos ainda, uma apodítica porque, mediante a experiência, não podem ter esta necessidade e esta universalidade que, sob esse título de proposições experimentais, não se podem jamais conseguir de semelhante natureza.

Ver-vos-eis obrigados a dar “a priori” vosso objeto na intuição e fundar nele vossa proposição sintética. Se não existisse em vós uma faculdade de intuição “a priori”, e se esta condição subjetiva, quanto à forma, não fosse ao mesmo tempo a geral condição “a priori”, única que torna possível o objeto desta intuição (externa) mesma; se fosse, enfim, o objeto (o triângulo) algo em si mesmo e alheio a toda relação com vosso sujeito, como podei-íeis dizer que o que é necessário em vossas condições subjetivas para construir um triângulo deve também pertencer imprescindivelmente ao triângulo em si?

Porque vós não podeis acrescentar aos vossos conceitos (de três linhas) nada de novo (a figura), que necessariamente deva encontrar-se no objeto porque esse objeto é dado anteriormente ao nosso conhecimento e não por ele. Se não fosse, pois, o espaço (e mesmo o tempo) uma forma pura de vossa intuição, que contém as condições “a priori”, as únicas que podem fazer com que sejam para vós as coisas objetos exteriores, e que sem esta condição subjetiva não são nada em si, não poderíeis determinar nada sinteticamente “a priori” dos objetos externos. É portanto indubitavel¬mente certo, e não só verossímil ou possível, que espaço e tempo, como condições necessárias para toda experiência (interna e externa) não são mais do que condições puramente subjetivas de todas as nossas intuições, e que a este respeito todos os objetos são somente fenômenos e não coisas em si dadas desta maneira.

Destes pode dizer-se muito “a priori”, referente à forma desses objetos; mas nada da coisa em si mesma que possa servir de fundamento a esses fenômenos.


II – Para confirmar esta teoria da idealidade e do sentido interno e externo e, conseqüentemente, de todos os objetos do sentido, como puros fenômenos, pode-se todavia observar que tudo o que pertence à intuição em nosso conhecimento (excetuando o sentimento de prazer, de dor e a vontade, que não são conhecimentos) não contém mais que simples relações: relações de lugar em uma intuição (extensão), de mudança de lugar (movimento) e de leis que determinam essa mudança (forças motrizes).

Mas o que está presente no lugar ou o que atua nas coisas mesmas fora da mudança de lugar não está dado na intuição. Pois bem; como pelas simples relações não pode ser conhecida uma coisa em si, é justo julgar que o sentido externo, que só nos fornece simples representações de relações, não possa compreender em sua representação mais do que a relação de um objeto com o sujeito, e não o que é próprio ao objeto e lhe pertence em si.

O mesmo sucede com a intuição interna. Não são só as representações dos sentidos externos que constituem a matéria própria com que enriquecemos nosso espírito, porque o tempo (no qual colocamos estas representações, e que precede à consciência das mesmas na experiência, servindo-lhes de fundamento como condição formal da maneira que temos de dispô-las em nosso espírito) compreende já relações de sucessão, de simultaneidade, e do que é simultâneo com o sucessivo (permanen¬te)

Ora, tudo o que pode, como representação, preceder a todo ato de pensamento, é a intuição; e como ela não contém senão relações, a firma da intuição, que não representa nada até que alguma coisa seja dada no espírito, não pode ser outra coisa mais do que a maneira segundo a qual o espírito foi afetado por sua própria atividade, ou por esta posição de sua representação, por conseguinte, por si mesmo, quer dizer, um sentido interno considerado em sua forma.

Tudo o que é representado por um sentido é sempre um fenômeno, e, por conseguinte, ou não deve reconhecer-se um sentido interno, ou o sujeito que é objeto do mesmo não pode ser representado por este sentido interno senão como um fenômeno, e não como ele se julgaria a si mesmo, se sua intuição fosse simplesmente espontânea, quer dizer: intelectual. Toda a dificuldade consiste em saber-se como um sujeito pode perceber-se intuitivamente a si mesmo; mas esta dificuldade é comum a todas as teorias.

A consciência de si mesmo (apercepção) é a representação simples do eu; e se tudo que existe de diverso no sujeito fosse dado espontaneamente nesta representação, a intuição interna seria ente intelectual. Esta consciência exige no homem uma percepção interna diversa, previamente dada no sujeito, e o modo segundo o qual é dada no espírito sem alguma espontaneidade deve, em virtude dessa diferença, chamar-se sensibilidade.

Para que a faculdade de ter consciência de si mesmo possa descobrir (apreender) aquilo que está no espírito, cumpre que aquele seja afetado: só sob esta condição podemos ter a intuição de nós mesmos; mas a forma desta intuição, existindo previamente no espírito, determina na representação do tempo a maneira de compor a diversidade no espírito; ele se percebe intuitivamente, não como se representara a si mesmo imediatamente e em virtude de sua espontaneidade, mas segundo a maneira pela qual ele é intuitivamente afetado, e, por conseguinte, tal como ele se oferece a si próprio e não como é.


III – Ao afirmar que a intuição dos objetos exteriores, e a que o espírito tem de si mesmo, representam, no espaço e no tempo, cada uma de per si, seu objeto, tal como este afeta os nossos sentidos, isto é, segundo nos aparecem, não quero dizer que esses objetos sejam mera aparência. E sustentamos isto, porque, no fenômeno, os objetos e também as propriedades que lhe atribuímos são sempre considerados como algo dado realmente; somente, como essas qualidades dependem unicamente da maneira de intuição, do sujeito em sua relação com o objeto dado, este objeto, como manifestação de si mesmo, é distinto do que ele é em si.

Assim, não digo que os corpos parecem existir simplesmente fora de mim, ou que minha alma só parece estar dada em minha consciência, quando afirmo que a qualidade do tempo e do espaço, segundo me represento e onde coloco a condição de sua existência, existe em meu modo de intuição e não nos objetos em si. Seria culpa minha se o que deve considerar-se como fenômeno fosse tido como uma pura aparência.(3)

Mas isto não se dá com o nosso princípio de idealidade de todas as nossas intuições sensíveis; concedendo-se, pelo contrário, uma realidade objetiva a essas formas da representação, tudo inevitavelmente se converte em pura aparência. Ao considerar tempo e espaço como qualidades que devem encontrar-se nas coisas em si para sua possibilidade, reflita-se nos absurdos a que chegam, admitindo duas coisas infinitas sem ser substâncias, nem algo realmente inerente nelas, mas que devem ser algo existente para condição necessária de existência para todos os objetos, e que subsisti¬riam ainda mesmo que cessassem de existir todas as coisas.

Não se deve censurar ao bom Berkeley, por ter reduzido tudo à aparência. Nossa própria existência, dependente em tal caso da realidade subsistente em si de uma quimera, tal como o tempo, será como este uma vá aparência: absurdo que até agora ninguém ousou sustentar.


IV – Na Teologia natural, em que se concebe um objeto que não só não pode ser para nós outros objeto de intuição, nem tampouco o pode ser de nenhuma intuição sensível, distingue-se cuidadosamente de sua própria intuição as condições de espaço e tempo (digo de sua intuição, porque todo o seu conhecimento deve ter este caráter e não o de pensamento, que supõe limites).

Mas, com que direito se procede assim, uma vez que se consideram espaço e tempo como formas dos objetos em si, e formas tais que subsistiriam como condições “a priori” da existência das coisas, ainda que estas desaparecessem? Se são condições de toda existência em geral, devem ser também da existência de Deus.

Se não são, pois, considerados espaço e tempo como formas objetivas de todas as coisas, é indispensável tê-los por formas subjetivas de nosso modo de intuição, tanto interna como externa. E afirmamos de tais intuições a sua qualidade de sensíveis, porque não são tais que por si sós produzam a existência real do objeto (cujo modo de intuição cremos que só pode pertencer ao ser supremo), mas que depende da existência do objeto e só são possíveis sendo afetada a faculdade representativa do sujeito.

Tampouco é necessário que limitemos a maneira de conhecer por intuição pelas quais representamos as coisas no espaço e no tempo, à sensibilidade humana. Quiçá todos os seres finitos, pensantes, conformem necessariamente nisto com os homens (ainda que nada possamos decidir neste particular); mas nem por essa universalidade deixará a intuição de ser sensibilidade, porque é derivada (intuitus derivatus) e não primitiva (intuitus originarius), e, por conseguinte, não é intuição intelectual, como a que parece pertencer tão-só ao ser supremo pelas razões antes indicadas e não um ser independente, tanto pela sua existência como pela sua intuição (que determina a sua existência em relação com os objetos dados). Esta última observação não deve ser con¬siderada mais do que um esclarecimento e não como uma prova de nossa teoria estética.

Conclusão da Estética transcendental

Já possuímos um dos dados requeridos para a solução do problema geraAdicionar imageml da Filosofia transcendental: como são possíveis as proposições sintéticas “a priori”?

Quer dizer, estas intuições puras “a priori”: espaço e tempo. Quando em nosso juízo “a priori” queremos sair do conceito dado, encontramos algo que pode ser descoberto “a priori” na intuição correspondente e não no conceito, e que pode ser enlaçado sinteticamente a este conceito; mas juízos que, por esta razão, só alcançam aos objetos dos sentidos e só valem para os da experiência.


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