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sábado, maio 27, 2006

ELOGIO À LOUCURA - Parte 04 - Erasmo de Rotterdam

Sinto certo escrúpulo em introduzir em nossa sociedade os jogadores de profissão. Mas, decerto que é uma loucura, oferecendo um espetáculo ridículo os que, de tão apaixonados pelo jogo, sentem bater e saltar o coração dentro do peito, sempre que vêm cartas na mesa ou ouvem o barulho dos dados. Então, quando a enganosa esperança de recuperar o que perderam faz com que percam o resto dos seus bens e quando a sua nau se quebra contra o escolho do jogo, escolho não menos fatal que o de Maléia (71), ainda se julgam muitos felizes por se terem salvo nuzinhos em pêlo desse naufrágio. E o mais bonito é que essa espécie de gente prefere roubar a quem quer que seja, exceto ao que a despojou, pelo receio de passar à conta de pouco honesta. Que deveria eu dizer desses velhos que, quase cegos de tanta idade, chegam a pôr os óculos para jogar e, tendo as mãos atacadas pela gota, pagam a alguém para que jogue os dados por eles? São tão loucos pelo jogo, e nele experimentam tão extremo prazer que sou levada a considerá-los como de minha atribuição. Mas, muitas vezes, o jogo se transforma em raiva e furor, e, então, me inclino a atribuí-lo mais às fúrias do que a mim.



Mas, eis que se adiantam algumas pessoas, que sem dúvida vivem sob as minhas leis: são os que se divertem ouvindo ou contando milagres e romanescas invencionices. Não acreditais? Pois esse bom gosto proporciona tal prazer que os sábios são indignos de experimentá-lo. É preciso, sim, é preciso ter nascido sob um particular auspício dos deuses para poder saborear tão doces quimeras. E o melhor é que nunca se fartam de ouvir semelhantes patranhas. Os milagres, os espectros, os duendes, os fantasmas, o inferno, e mil outras visões dessa natureza, são o assunto mais comum das conversas do vulgo ignorante, sendo que, quanto mais extraordinárias são essas coisas, com tanto maior prazer são elas ouvidas e facilmente acreditadas. E não penseis que tais histórias se contem apenas para iludir as horas de aborrecimento: tornaram-se, na boca dos monarcas e dos pregadores, um meio de tirar proveito da crendice popular.


A essa espécie podem agregar-se, a justo título, os ridículos e originais supersticiosos, os quais, toda vez que têm a sorte de ver alguma estátua de madeira ou alguma imagem do seu polifêmico São Cristóvão (72), ficam convencidos de que nesse dia não poderão morrer. Soldados há que, depois de uma pequena prece diante da imagem de Santa Bárbara, ficam certos de que sairão ilesos da batalha. Alguns acreditam que, invocando Santo Erasmo em certos dias, com certas orações e à luz de certas lamparinas, seja possível fazer uma grande fortuna em pouco tempo (73). E que direi do hercúleo São Jorge, que para esses supersticiosos faz as vezes de um novo Hipólito (74)? Na verdade, não se pode deixar de rir diante de sua devoção, que consiste em ornar pomposamente o cavalo do santo e quase que em prostar-se, diante do animal assim enfeitado, para adorá-lo. Fazem questão absoluta de conservar o favor e a proteção do cavaleiro por meio de alguma oferta, sendo inviolável para eles o juramento que fazem pelo seu penacho. Mas, porque não falar dos que julgam que, em virtude dos perdões e das indulgências, não têm nenhuma dívida para com a divindade? Com a exatidão de uma clepsidra e da mesma maneira por que, matematicamente, sem recear erro de cálculo, medem os espaços, os séculos, os anos, os meses, os dias, — assim também, com essa espécie de falazes remissões medem eles as horas do purgatório. Outra espécie de extravagantes é constituída pelos que, confiando em certos pequenos sinais exteriores de devoção, em certos palanfrórios, em certas rezas que algum piedoso impostor inventou para se divertir ou por interesse, estão convencidos de que irão gozar uma inalterável felicidade, conquistar riquezas, obter honras, satisfazer determinados prazeres, nutrir-se bem, conservar-se sãos, viver longamente e levar uma velhice robusta. E, como se isso não bastasse, ainda esperam poder ocupar no paraíso um posto elevado, sob a condição, porém, de só passarem ao número dos beatos tão tarde quanto possível. Pensam, então, chegado o tempo de voar por entre as inefáveis e eternas delícias do céu, uma vez abandonados pelos bens da terra, a que se aferram de todo o coração.



Persuadidos dos perdões e das indulgências, ao negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus numerosos roubos como quando saíram da pia batismal. Tantos falsos juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassínios, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com um pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações. Quem já terá visto homens mais tolos, ou melhor, mais felizes do que os devotos, os quais julgam que entrarão infalivelmente no reino dos céus, recitando todos os dias sete versículos, que eu não sei quais sejam, dos salmos sagrados? No entanto, foi um demônio quem fez tão bela descoberta; mas, um demônio tolo, que tinha mais vaidade do que talento, tanto assim que cometeu a imprudência de exaltar o seu mágico segredo com São Bernardo (75), que era muito mais esperto do que ele. E todas essas coisas não serão, talvez, excelentes loucuras? Ah! como isso é verdadeiro! Até eu, que sou a Loucura, não posso deixar de sentir vergonha. No entanto, não é o público o único a aprovar tão completas extravagâncias. Sustentam a sua prática, dando o exemplo, os próprios professores de teologia. E, já que viajo por esses mares, convém continuar a navegar. Digamos, assim, algumas palavras sobre a invocação dos santos. É curioso verificar que cada país se gaba de ter no céu um protetor, um anjo tutelar, de forma que, num mesmo povo, entre esses grandes e poderosos senhores da corte celeste, se encontrem as diversas incubências do protetorado. Um cura dor de dentes, outro assiste ao parto das mulheres; aquele faz achar os objetos perdidos, este vela pela segurança e prosperidade do gado; um salva os náufragos, outro confere a vitória nos combates. Suprimo o resto, porque será um nunca mais acabar.


Além desses, existem outros santos que gozam de um crédito e um poder universais, encontrando-se entre estes, em primeiro lugar, a mãe de Deus, a quem o vulgo atribui poder maior que o do seu próprio filho. Ora, as graças que os homens pedem aos santos não serão, talvez, insinuadas também pela Loucura? Dizei-me se, entre tantos votos religiosos de reconhecimento que vedes cobrindo por completo as paredes e as abóbadas das igrejas, já vistes penduradas um único de reconhecimento por cura milagrosa de loucura. Decerto que não: os homens não costumam importunar os santos para obter uma graça dessa natureza. Daí resulta que, por maior que seja a sua devoção, nunca se tornam nem um pouquinho mais sábios. Eis porque, enquanto se vêem, suspensos dos altares, ex-votos relativos a toda sorte de graças recebidas, nenhum se encontra, todavia, que se refira a um caso curado de loucura. Aquele pendurou um ex-voto por se ter salvo a nado quando julgava naufragar; este, porque não morreu de um grave ferimento recebido numa briga; um outro, porque, enquanto os outros caíam prisioneiros do inimigo, conseguiu subtrair-se ao perigo, graças a uma feliz e valorosa fuga; aquele outro, porque, tendo sido condenado à forca como prêmio às suas boas ações, caiu do laço, graças a algum santo dos larápios, a fim de que, pior do antes e em virtude da caridade do próximo, voltasse a roubar os que tivessem a bolsa muito cheia de dinheiro; um outro, por ter recuperado a liberdade rompendo as grades da prisão; outro por se ter restabelecido facilmente de uma febre muito grave, com grande mágoa do médico, que esperava fazer uma cura mais longa e mais lucrativa; este, porque, em lugar da morte, encontrou remédio no veneno que lhe fora dado, enquanto sua mulher, que já suspirava pelo momento da libertação, ficou na maior amargura por ter falhado o golpe; outro, porque, tendo caído com seu carro, não teve receio algum e pôde reconduzir à casa, sãos e salvos, os cavalos; aquele, porque, tendo ficado soterrado num desabamento, conseguiu salvar-se sem nada sofrer; outro, finalmente, porque, tendo sido pilhado em flagrante pelo marido de sua bela, saiu da enrascada com a maior desenvoltura.


Ora, bem vedes que ninguém deu graças a Deus, ou à Virgem, ou a qualquer santo, por ter recuperado o juízo. A loucura tem tantos atrativos para os homens, que, de todos os males, é ela o único que se estima como um bem. Mas, porque engolfar-me nesse oceano de superstições?


Se eu tivesse cem línguas e cem bocas,
E férrea voz, em vão de tantos tolos
As espécies contar eu poderia,
E de tanta tolice os vários nomes.

(Virgílio, Eneida, livro VI e Homero, III, livro VI.)



De tal maneira está a vida de cada cristão repleta de semelhantes desejos! Bem sei que os sacerdotes não são tão cegos que não compreendam deformidades tão vergonhosas; mas é que, em lugar de purgar o campo do Senhor, eles se empenham em semeá-lo e cultivá-lo de ervas daninhas, com toda a diligência, certos como estão de que estas costumam aumentar-hes as ganhuças. Suponha-se que, em meio a todos esses prejuízos, surgisse um odioso moralista que, em tom apostólico, fizesse esta patética, mas verdadeira exortação: “Não basta ter devoção por São Cristóvão: é preciso, também, viver segundo a lei divina, para não chegar a um mau fim. Não basta oferecer uma pequena moeda para obter perdões e indulgências: é preciso, ainda, odiar o mal, chorar, velar, rezar, jejuar, numa palavra, mudar de vida, praticando constantemente o Evangelho. Confiais em algum santo? Pois segui os seus exemplos, vivei como ele viveu, e assim merecereis a graça do vosso santo protetor”. Aqui entre nós: esse moralista não andaria mal falando dessa forma, mas, ao mesmo tempo tiraria os homens de um estado de felicidade, para lançá-los na miséria e na dor.



Uma palavrinha acerca de uma espécie de doidos, porque seria um grande mal não os pôr igualmente em cena, quando honram tanto o meu império. Quero referir-me aos ricos que, vendo chegar o fim dos seus dias, providenciam grandiosos preparativos para uma passagem magnífica ao túmulo. É com grande prazer que se observa como esses moribundos se aplicam seriamente às suas pompas fúnebres. Estabelecem, artigo por artigo, quantos círios e quantas velas devem arder nos seus funerais, quantas pessoas vestidas de luto, quantos músicos, quantos carpidores devem acompanhar o féretro, como se, depois de mortos, ainda pudessem conservar alguma consciência para gozar o espetáculo, ou soubessem ao certo que os mortos costumam ficar envergonhados quando os seus cadáveres não são sepultados com a magnificência exigida por seu próprio estado. Finalmente, parece que esses ricos consideram a morte como um cargo de edil, que os obrigue a ordenar festas populares e banquetes.


Embora seja fecundíssimo o meu assunto, sendo eu forçada a tratá-lo superficialmente, não poderei, contudo, silenciar sobre esses grandes panegiristas, esses vaidosos apreciadores da própria nobreza. Não é raro encontrar, entre estes, os que, com ânimo abjeto e vilíssimas e plebéias inclinações, vos pasmem à força de repetir: “Sou um fidalgo”. Convém provar a antigüidade de suas estirpes? Um descende do piedoso Enéias; outro remonta ao primeiro cônsul de Roma; este procede, em linha reta, do rei Artur. Além disso, mostram as estátuas e os retratos dos antepassados: enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores. Enquanto isso, pouco diferem eles de uma estátua muda, e eu os diria mesmo quase inferiores às próprias figuras que vão mostrando. Esses idiotas fazem um alto conceito de si mesmos e estão sempre cheios da estéril idéia de sua ascendência. O que é fato, porém, é que imbuídos dessa quimera, levam uma vida contente e feliz. Ora, o que contribui, em grande parte, para que em tão boa conta se tenha esse belo fantasma de nobreza, é justamente o respeito que o vugo insano demonstra por eles, parecendo até enxergar nesse gênero de bestas, nesses nobres sem mérito, outras tantas divindades.



Mas, ao tratar do amor próprio, porque hei de me restringir a uma ou duas espécies apenas de loucura? Quantos meios surpreendentes não possuirá o meu caro amor próprio, que vedes aqui presente, para impedir que o homem fique desgostoso de si mesmo? Olhai aquele rosto: não há macaco mais feio, nem mais disforme; no entanto, julga-se um lindo rapaz. E, perto dele, o outro que traça duas ou três linhas com exatidão, à força de compasso! Intimamente, já se aplaude, julgando-se um Euclides. E aquele que está cantando, ainda pior que um galo? Não importa: pensa ter uma voz paradisíaca. Todavia, também essa espécie de loucura é verdadeiramente agradável. Alguns possuem um numeroso bando de criados, cada qual com uma boa qualidade, e julgam que essas boas qualidades lhes sejam peculiares. Tal era, segundo Sêneca, aquele rico duplamente feliz que, ao pretender contar alguma história, tinha sempre ao redor os escravos, que lhe auxiliavam a memória, sugerindo-lhe os vocábulos adequados, mesmo os mais comuns. Esse senhor, era, além disso, tão fraco que bastava um pequeno sopro de vento para levá-lo ao chão: isso, contudo, não impedia que estivesse sempre disposto a bater-se a socos, fiando-se na força dos escravos, como se esta fosse sua.



É inútil passar aqui em revista os que professam as artes, porque com razão podem ser considerados os prediletos, os favoritos do meu amor próprio. Em geral, essas pessoas estão de tal forma fanatizadas por seu pequeno mérito que prefeririam ceder uma parte do seu patrimônio a confessar-se ineptas. Os cômicos, os músicos, os oradores, os poetas — eis aí, eis os melhores amigos do amor próprio! Quanto mais ignorantes, tanto mais perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício próprio, aproveitam todas as ocasiões para celebrar os próprios louvores. Mas, não penseis que não encontrem quem os aplauda, pois toda tolice, por mais grosseira que seja, sempre encontra sequazes. Mas, ainda é pouco: quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é justamente o que se adota com maior avidez. Perguntar-me-eis por que? Pois já não vos disse mil vezes? É porque quase todos os homens são malucos. A ignorância tem, pois, dois grandes privilégios: um, que consiste em estar de perfeito acordo com o amor próprio, e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano. Por conseguinte, seríeis duas vezes ingênuos se quisésseis elevar-vos acima do nível comum, com toda a vossa ciência filosófica. Que pensais que obteríeis com isso? Podeis estar certos de que, além de vos custar muito caro semelhante propósito, chegaríeis ao ponto de não saberdes tolerar mais ninguém e de não poderdes por mais ninguém ser tolerados. Resultaria, enfim, que ninguém seria capaz de apreciar o vosso gênio e de penetrar os vossos sentimentos.



Parece-me de novo oportuno fazer outra reflexão sobre o amor próprio. Façamo-la juntos. Todo homem, ao nascer, recebe o seu amor próprio como um dom da natureza. Mas, essa mãe comum não se limitou apenas ao homem, pois fez o mesmo presente à sociedade, de maneira que não se acha uma única nação, uma única cidade que não tenha o seu gosto particular. Os ingleses, por exemplo, amam com transporte a beleza, a música e os banquetes lautos; os escoceses dão grande valor à nobreza e, sobretudo, à que deriva do sangue do seu rei, gabando-se, além disso, de serem raciocinadores sutis; os franceses atribuem-se a polidez e a civilidade, sendo que sobretudo os parisienses gabam a sua teologia; os italianos decantam a sua literatura e sua eloqüência. Em suma, cada nação se compraz em ser a única verdadeiramiente civilizada e sem sombra de barbarismo. Pode dizer-se que os romanos são os mais enfatuados desse gênero de felicidade: Roma moderna sonha ainda participar da grandeza de Roma antiga. Os venezianos são felizes pela alta opinião que têm da própria nobreza. Vangloriam-se os gregos de terem sido os inventores das artes e das ciências, além de serem os descendentes dos famosos heróis que em seu tempo tanto estrépito fizeram no mundo. Os turcos e todos os outros povos semelhantes, que não passam, afinal, de um ajuntamento de bárbaros, se jactam de serem os únicos que vivem no seio da verdadeira religião, ridicularizando as superstições e a idolatria dos cristãos. E que direi dos judeus? Estes vivem satisfeitíssimos, à espera do seu Messias, e, muito longe de impacientar-se pela enorme demora, obstinam-se cada vez mais em esperá-lo, achando que não podem em absoluto estar enganados, apoiados como se encontram nas promessas do seu Moisés. Os espanhóis reservam para si toda a glória da guerra. Finalmente, os alemães se pavoneiam por sua natureza gigantesca e por sua habilidade na ciência da magia.



Mas, vamos! Liquidemos logo o assunto, que seria interminável. Estais vendo, agora, se não me engano, como o amor próprio difunde por toda parte grandes alegrias, quer nos indivíduos, quer nas nações. Ao lado do amor próprio, acha-se sempre a sua boa irmã — a adulacão. Isto posto, respondei-me: em que consiste o amor próprio? Não consistirá, porventura, em agradar, em satisfazer, em adular a si mesmo? Pois bem: quando procedeis dessa forma em relação aos outros, isso se chama adulação. Hoje em dia, tem, essa pobre adulação a desgraça de estar muito desacreditada: mas, por quem? Por todas as pessoas que se ofendem mais com as palavras do que com os fatos. Acredita-se que a adulação não possa coadunar-se com a boa fé. Idéia falsa! Pois os próprios animais não nos mostram o contrário? Em vão se procuraria animal mais cortesão e adulador do que o cão, e, não obstante, quem pode vangloriar-se de ser mais fiel do que ele? O esquilo domesticado procura sempre brincar: será ele por isso, menos amigo do homem? Se a adulação excluísse a boa fé, seria preciso concluir, então, que os ferozes leões, os tigres cruéis e os irriquietos leopardos devem ser afeiçoados à espécie humana. Não ignoro que há péssima adulação, da qual costumam servir-se as maliciosos e os caçoadores para arrumar e ridicularizar míseros tolos e vaidosos. Não é essa porém a minha adulação predileta, e praza a Deus que não a conheça nunca! Provêm a minha da doçura, da bondade, da inteireza de coração, e tanto se avizinha da virtude como se distancia de um caráter rude, insociável e importuno, que, como, diz Horácio desgosta e afasta. A minha adulação reanima os espíritos abatidos, alegra os melancólicos, estimula os poltrões, desperta os estúpidos, restabelece os enfermos, acalma os furibundos, forma e mantém os amores. A minha adulacão incita as crianças ao trabaho e ao estudo, e consola os velhos. Sob o manto do louvor, censura e instrui os monarcas, sem ultrajá-los. Enfim, minha adulacão faz com que os homens, como outros tantos Narcisos (76), se apaixonem por si mesmos, dando origem à principal felicidade da vida.


Quem já viu ação mais delicada e mais grata que a praticada por dois bons e honestos burros que se coçam mutuamente? É a esse mútuo auxílio que se dirige em grande parte a eloqüência, muito a medicina e ainda mais a poesia. Devo acrescentar que essa adulacão é o mel, o condimento de toda a sociedade humana. Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado; eu, ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade. Tal era justamente o princípio dos meus acadêmicos, que se mostravam nisso menos orgulhosos que todos os outros filósofos. Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão — pergunto — as que perturbam o tranqüilidade e os prazeres da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso. Quereis disso uma prova sensível e incontrastável? Ide assistir a um sermão, e vereis que, quando o cacarejador (oh! que injúria! enganei-me, desculpai-me), queria dizer, quando o pregador aborda o assunto com seriedade e apoiado em argumentos, o auditório dorme, boceja, tosse, assoa o nariz, relaxa o corpo, inteiramente enjoado. Se, porém, o orador, como quase sempre é o caso, conta uma velha fábula ou um milagre da lenda, então o auditório logo se agita, os dorminhocos despertam, todos os ouvintes levantam a cabeça, arregalam os olhos, prestam atenção. Nunca observastes que, ao celebrar-se numa igreja a festa de um santo poético ou romântico — por exemplo, de um São Jorge, de um São Cristóvão, de uma Santa Bárbara — em geral se costuma consagrar-lhe uma pompa e uma devoção bem maiores que a que se consagra a São Pedro e São Paulo, e ao próprio Nosso Senhor? Mas, não é este o lugar apropriado para tal questão.


Voltemos ao nosso assunto. Quanto não custa conquistar a felicidade de opinião! Que os que pretendem repor a felicidade no gozo das coisas tenham a bondade de observar quais e quantos são os sofrimentos que costumam causar mesmo os objetos menos importantes. Para fazermos um juízo a respeito, basta-nos lembrar as dificuldades que oferece o estudo da gramática. A opinião, ao contrário, é concebida sem esforço, insinua-se por si mesma no coração e contribui também, talvez mais do que a evidência e a realidade das coisas, para a felicidade da vida. Se um esfomeado come carne podre, cujo fedor obrigaria um outro a tapar o nariz, se ele a come com tanto gosto como se se tratasse do alimento mais fino, eu vos pergunto se por isso deve ser considerado menos feliz. Ao contrário, se um enfastiado comesse excelentes iguarias e, em lugar do seu gosto, sentisse náuseas, onde estaria, nesse caso, a sua felicidade? Para um homem que tem uma mulher feíssima, mas na qual vê perfeitamente a sua bela, não é o mesmo que se tivesse desposado uma Vênus? O tolo que possui um mau e miserabilíssimo quadro, mas acredita possuir uma pintura de Zeuxis ou de Apeles, não se cansando de comtemplá-lo e admirá-lo, não será incomparavelmente mais feliz que o que, tendo comprado por elevado preço um quadro desses excelentes pintores, não experimente igual prazer ao contemplar as suas obras?


De um homem que tem a honra de trazer o meu nome, eu sei que, pouco depois das núpcias, deu de presente à sua mulher brihantes falsos. Sendo ele um engraçado tratante, convenceu a mulher de que as pedras eram preciosas, tendo lhe custado uma grande soma. Ora, nada faltava ao prazer da esposa. Ela gostava de se enfeitar com aqueles pedaços de vidro e não se cansava de admirá-los, satisfeitíssima de possuir o imaginário tesouro, como se este fosse real. Ao mesmo tempo, o marido poupara uma despesa apreciável e estava contente com o engano da mulher, que lhe agradecia da mesma forma por que o teria feito se ele lhe tivesse dado um magnífico presente.


Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna de Platão (77). Ao verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas, admiram-nas e nada mais procuram, dando-se por satisfeitos. Já os filósofos, por estarem fora da caverna, não só observam os mesmos objetos como lhes investigam os mistérios. Não terão uns e outros o mesmo prazer? Se o remendão Micilo (78), de que fala Luciano, tivesse podido passar o resto dos seus dias no belíssimo sonho em que se embalava quando o despertaram, poderia ele desejar felicidade maior?


Não haveria, pois, diferença alguma entre os sábios e os loucos, se não fossem mais felizes estes últimos. Sim, porque estes o são por dois motivos: o primeiro é que a felicidade dos loucos não custa nada, bastando um pouquinho de persuasão para formá-la; o segundo é que os meus loucos são felizes mesmo quando estão juntos com muitos outros. Ora, é impossível gozar um bem quando se está sozinho.



Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar deles, e eu desejaria saber mesmo se é possível descobrir algum. No curso de tantos séculos, a Grécia se vangloria de ter produzido apenas sete sábios. É na verdade maravilhoso! O gênero humano deve mesmo muito a essa felicidade da Grécia! Foram mesmo sete? Pois pedi a Deus que não vos venha o desejo de anatomizá-los cuidadosamente, porque, de contrário (juro-vos por Hércules, arrebento-vos a cabeça), não encontraríeis, decerto, nem a metade de um filósofo e talvez nem mesmo um terço.



Quero louvar-me ainda num outro fato. Entre os numerosos méritos que os poetas costumam atribuir a Baco, o que se mantém e é realmente o primeiro é o que consiste em tirar e dissipar do ânimo dos mortais as aflições, as inquietações e a tristeza, perversas filhas da razão: mas, por pouco tempo, porque, depois de algumas horas de sono, voltam a atormentar-nos imediatamente e, como se costuma dizer, a todo o galope. Não será isso inteiramente o oposto do bem que proporciono aos mortais? Eu os embriago, mas também lhes tiro a razão. Minha embriaguez é muito diferente da de Baco: enche a alma de alegria, de tripúdio e de delícias, dura até ao fim da vida e não custa dinheiro nem dá remorsos.


Os homens me devem ser particularmente gratos, pois não permito que haja entre eles algum que não sinta mais ou menos os efeitos da minha beneficência. Nenhuma das outras divindades reparte igualmente, entre os mortais, os seus favores. Não cresce por toda parte aquele vinho generoso e saboroso que afasta as aflições importunas e enche até o ânimo mais melancólico de alegria, de coragem e de esperanças. Vênus raramente concede o dom da beleza; Mercúrio dá a poucos a eloqüência e Hércules é parco dispensador das riquezas; o homérico Júpiter na cabeça de muito poucos põe a coroa; Marte freqüentemente recusa aos dois exércitos o seu auxílio; Apolo costuma dar respostas desagradáveis aos que consultam o seu oráculo; o filho de Saturno constantemente lança suas setas; Febo às vezes manda a peste e Netuno mata mais pessoas do que salva. Quanto às horríveis divindades chamadas Vejoves, como seriam Plutão, a Discórdia, o Castigo, a Febre, e outras tantas que deveriam antes chamar-se carniceiras que divindades, não merecem em absoluto que eu me dê ao trabalho de lhes fazer alusão.


Portanto, a verdade é que os outros deuses não são bons e benéficos para todos os mortais, sendo a Loucura a única deusa que cumula de favores todo o gênero humano. E o admirável é que a minha generosidade não é manchada por nenhum interesse. Sou a única que não exige nem votos nem ofertas. Minha divindade não se ofende nem ordena vitimas de expiação, quando omitida alguma cerimônia do meu culto. Não ponho em desordem o céu e a terra para vingar-me de alguém que tendo convidado todos os outros deuses, só a mim tenha esquecido em casa, deixando-me à margem do odor e da fumaça das vítimas sacrificadas. Para confusão e vergonha dos outros deuses, deverei eu mesma dizer que se mostram tão incontestáveis e caprichosos que seria um mal absolutamente menor deixá-los em abandono do que adorá-los. Com eles se deveria fazer o que se costuma praticar com as pessoas intratáveis e inclinadas ao mal, isto é, cortar com eles toda correspondência, uma vez que tão caro é o preço de sua amizade.


E quem acreditaria, agora, que essa minha conduta devesse provocar desprezo? Até agora, é voz geral, ninguém pensou em prestar à Loucura honras divinas; ninguém lhe consagrou um templo; ninguém a nutriu com vapores das vitimas. Para falar-vos com franqueza, e creio que já o disse, tamanha ingratidão me causa grande surpresa; mas, pouco me importa isso e, de acordo com a minha natural facilidade, não levo a coisa a mal. Eu cheiraria à sabedoria e seria indigna de ser Loucura se reclamasse essas honras divinas. Que é que se me ofereceria sobre os altares? Um pouco de incenso, um pouco de farinha, um bode, um porco. Poderia eu permitir que se degolassem esses inocentes animais para deleitar-me o olfato? Oh! que ridículas bagatelas! Tenho um culto, sim, um culto que abrange o mundo inteiro e que todos os mortais me prestam, e os próprios teólogos o consolidam pelo exemplo. Não tenho a bárbara e cruel ambição de Diana, que vê com prazer as vítimas humanas, mas creio, ao contrário, ser religiosamente servida e venerada quando me vejo esculpida em cada coração e representada pelos costumes e pela conduta.


A propósito de culto, o que os cristãos prestam aos santos consiste quase todo em amá-los e imitá-los. Oh! como são numerosos os que, em pleno meio-dia, acendem velas aos pés da Virgem Mãe de Deus! Mas, não se acha quase nenhum que siga os seus exemplos de castidade, de modéstia, de zelo pela causa da salvação. No entanto, a imitação das suas virtudes seria o único culto capaz de assegurar o céu aos devotos.


De resto, porque hei de exigir um templo, se possuo um tão vasto e tão belo, que é a terra inteira? Não me faltam ministros, nem sacerdotes, salvo nos lugares onde não existe nenhum homem. Eu não desejaria que me julgásseis tão idiota ao ponto de me preocupar com estátuas e imagens: tais figuras seriam de resultados bem funestos para o nosso culto, pois que muitas vezes sucede que os devotos estúpidos e materiais tomam a imagem pelo santo, e, nesse caso, a nossa sorte seria a mesma dos que são suplantados por seus vigários. Todos os mortais são estátuas a mim erigidas, imagens vivas da minha pessoa, mesmo contra a própria vontade. Consinto, pois, de bom grado, que os outros deuses tenham templos, um num canto da terra, outro em outro, e sejam festejados apenas em certos dias do ano. Adore-se Febo em Rodes, Vênus em Cipre, Juno em Argos, Minerva em Atenas, Júpiter no Monte Olimpo, Netuno em Taranto, Príapo em Lâmpasco. Quanto à minha condição divina, será sempre mais gloriosa que a deles, enquanto a terra for o meu templo e todos os mortais as minhas vítimas.


Poderá, talvez, parecer a alguém que eu esteja pregando impudentes mentiras. Quero, porém mostrar-vos que tudo isso é a pura verdade. Reflitamos um pouco sobre a vida humana, e se eu não vos demonstrar que sou a deusa à qual todos os homens são mais gratos e que eles mais estimam, desde o cetro ao bastão do pastor, acima de todas as coisas, estou disposta a deixar de ser a Loucura. Não quero, contudo, dar-me ao trabaho de percorrer todas as condições, pois demasiado longa seria a carreira. Limitar-me-ei, assim, a indicar as principais, das quais facilmente se poderá inferir o resto.


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A começar pelo vulgo, ou seja a gentinha, não há dúvida de que todo ele me pertence pois tão fecundo é em toda sorte de loucuras, tal é o numero das que descobre diariamente, que mil Demócritos seriam poucos para rir-se bastante, sendo que esses mil Demócritos ainda precisariam de outro Demócrito para rir-se deles. É incrível dizer-se quanto esses grosseiros homenzinhos servem diariamente de divertimento, de riso e de chacota aos deuses. Para vos convencerdes disso, convém dizer-vos uma coisa. Os deuses são sóbrios até à hora do almoço, empregando essas horas matinais em contenciosas deliberações e em escutar as preces dos mortais. Terminada a refeição, ao sentirem subir à cabeça os vapores do néctar sorvido a largos goles, não sabem mais aplicar-se a assuntos de alguma importância. Que pensais que eles fazem, então, para restaurar o cérebro? Reúnem-se todos na parte mais elevada do céu e, sentados lá em cima, olham para baixo, divertindo-se à grande com o espetáculo das várias ações humanas. Deuses imortais! Que bela e ridícula comédia não resultará de todos os movimentos dos loucos? Bem posso dizê-lo, pois que às vezes participo desse divertimento das divindades poéticas.


Um se apaixona perdidamente por uma mulherzinha, e, quanto menos correspondido, tanto mais acesa se torna sua paixão amorosa; outro casa-se com o dote e não com a moça; outro prostitui a própria mulher vendendo-a ao primeiro que encontra; outro, finalmente, agitado pelo demônio do ciúme, espia como um Argos a conduta da esposa. E que coisas estranhas não se dizem e fazem quando morre um parente próximo? Chega-se ao ponto de pagar a pessoas que finjam chorar e gesticulem como cômicos. Quanto maior é a alegria experimentada pelo coração, tanto maior é a tristeza que o rosto aparenta, o que deu origem ao provérbio grego: Chorar na sepultura da madrasta. Este tira o quanto pode, seja de onde for, e dá tudo de presente à própria barriga, com o risco de morrer de fome depois de satisfeita a gulodice; aquele põe toda a sua felicidade no ócio e no sono; há alguns que, preocupados sempre com os negócios alheios, descuram inteiramente dos próprios interesses; vêem-se os que contraem dívidas para pagar as dos outros e, quando se julgam ricos, verificam que estão falidos; há os que, vivendo pobremente, não conhecem outra felicidade senão a de enriquecer os seus herdeiros; outros, ávidos de riquezas, percorrem os mares em busca de um ganho incerto, confiando às ondas e aos ventos uma vida que nenhum ouro do mundo poderia resgatar; outros, sedentos de sangue, preferem tentar a sorte no meio dos perigos e dos horrores da guerra a passar seus dias, cômoda e tranqüilamente, no seio da família; enfim, gabam-se de uma gorda herança, quando conseguem apoderar-se do ânimo de algum velho que está para morrer sem herdeiros, ou quando têm a fortuna de cativar a graça e o favor de uma rica velhota. Mas, depois, como se riem os deuses, ao verem esses pescadores de dinheiro nas próprias redes!


Os negociantes, sobretudo, são os mais sórdidos e estúpidos atores da vida humana: não há coisa mais vil do que a sua profissão, e, como coroamento da obra, exercem-na da maneira mais porca. São, em geral, perjuros, mentirosos, ladrões, trapaceiros, impostores. No entanto, devido à sua riqueza, são tidos em grande consideração e chegam a encontrar frades aduladores, particularmente entre os mendicantes, que lhes fazem humildemente a corte e publicamente lhes dão o nome de veneráveis, a fim de lhes abiscoitar uma parte dos mal adquiridos tesouros. Vêem-se, também, alguns sequazes de Pitágoras, que adotando a opinião desse filósofo, segundo a qual todos os bens são comuns, usurpam concientemente tudo o que podem, como se conseguissem uma herança legítima. Outros, imaginando-se ricos, arquitetam belíssimas quimeras de fortuna e vivem felizes nas suas esperanças. Alguns querem passar por ricos, embora às vezes chegue a lhes faltar o necessário. Um apressa-se a esbanjar todos os seus bens, enquanto outro está sempre preocupado em acumular, por meios lícitos, tudo o que pode. Há os que anseiam por obter um cargo, e os que, acima de tudo, preferem viver ociosamente sentados a um canto do lar. Enfurecem-se as partes com a demora do processo, parecendo apostar qual das duas tem mais a possibilidade de enriquecer um juiz venal e um advogado prevaricador, cujo intuito não é senão prolongar a demanda, que só para eles traz vantagens. Os homens agitados e sediciosos andam sempre atrás de novidades, enquanto os inquietos meditam grandes empresas. Alguns empreendem uma romaria a Jerusalém, a Roma, a São Tiago, onde não têm nada que fazer, enquanto deixam abandonados em casa a mulher e os filhos, que tanto necessitam de sua presença.