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sábado, maio 27, 2006

ELOGIO À LOUCURA - Parte 03 - Erasmo de Rotterdam

Quanto ao resto... Deuses imortais! Devo falar? Devo calar-me? E porque devo calar-me, se tudo o que quero dizer é mais verdadeiro do que a própria verdade? Ajudai-me, porém, em assunto de tão relevante importância, a me dirigir às Musas e pedir-lhes que me auxiliem, dispondo-se a vir do seu Helicão até a mim, tanto mais quanto os poetas tantas vezes cometem a indiscrição de fazê-las descer por meras frioleiras. Vinde, pois, por um instante, oh filhas de Júpiter, pois quero provar que essa sabedoria tão gabada e que enfaticamente se chama o baluarte da felicidade, só é acessível aos que são orientados pela Loucura.


Antes de mais nada, sustento que, em geral, as paixões são reguladas pela Loucura. Com efeito, que é que distingue o sábio do louco? Não será, talvez, o fato do louco se guiar em tudo pelas paixões, e o sábio pelo raciocínio? É por isso que os estóicos afastam do sábio toda e qualquer perturbação de ânimo, considerando-a um verdadeiro mal. Aliás, se é que nos merecem fé os peripatéticos, as paixões fazem as vezes de pedagogos aos que se encaminham para o porto da sabedoria: são como estímulos e incentivos para a satisfação dos deveres da vida e para uma conduta virtuosa. É verdade que Sêneca, duas vezes estóico, isenta o seu sábio de toda sorte de paixões. Oh! bela obra-prima! Decerto, esse sábio não é mais homem, mas uma espécie de deus que nunca existiu. Falemos mais claramente: o que ele fez foi uma fria estátua de mármore, privada de todo senso humano.


Que os senhores estóicos apreciem e amem à vontade o seu sábio e vão passar a vida na cidade de Platão (55), ou, se acharem melhor, na região das idéias, ou nos jardins de Tântalo (56). Que espécie de homem é um estóico? Quem poderá deixar de evitá-lo como a um monstro, de temê-lo como um fantasma? Eis o retrato fiel de um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente o seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e se julga o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo, e o mais interessante é que é o único a se julgar assim. Amigos. É a sua ultima preocupação, pois não possui nenhum. Sem nenhum escrúpulo, chega a insultar os deuses e a condenar como verdadeira loucura tudo o que se faz no mundo, ridicularizando todas as coisas.


Vede o belo quadro desse animal que nos apresentam como o modelo acabado da sabedoria. Dizei-me, por favor: se a questão pudesse ser posta a votos, que cidade desejaria semelhante magistrado? Que exército reclamaria um tal general? Quem o convidaria à sua mesa? Estou igualmente convencida de que não acharia, sequer, uma mulher ou servo que quisessem e pudessem suportá-lo. E quem, ao contrário, não preferiria um homem qualquer, tirado da massa dos homens estúpidos; que, embora estúpido, soubesse mandar ou obedecer aos estúpidos, fazendo-se amar por todos; que, sobretudo, fosse complacente para com a mulher, bom para os amigos, alegre na mesa, sociável com todos os que convivesse; que, finalmente, não se achasse estranho a tudo o que é próprio da humanidade? Mas, para falar a verdade, chego a ter nojo de falar dessa espécie de sábios. Passo, por isso, a tratar dos outros bens da vida.




***


Quando se reflete atentamtente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma alta torre (justamente a maneira pela qual Júpiter costuma proceder, segundo dizem os poetas), todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incômodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel. Quem poderia descrever a infinita série de males que o homem causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc.? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível vale de misérias. Assim, pois, quem quer que examine a fundo a miserabilíssima condição do gênero humano, não poderá, decerto, deixar de aprovar o exemplo das virgens de Mileto (57), embora seja um exemplo digno de toda a compaixão.


Quais foram os mais célebres desgostosos da vida que procuraram espontaneamente a morte? Não foram, porventura, os amigos mais próximos da sabedoria? Para não falar de Diógenes, Xenócrates, Catão, Cássio, Bruto, lembro apenas o famoso Quirão (58), que preferiu a morte à imortalidade. Já sei que logo compreendereis quanto o mundo duraria pouco, se a sabedoria fosse comum entre os mortais. Sou mesmo de opinião que, em breve, haveria necessidade de uma nova argila e de um novo Prometeu (59). Mas, também nesse caso, sou eu quem providencia, mantendo os homens na ignorância, na irreflexão, no esquecimento dos males passados e na esperança de um futuro melhor. Misturando as minhas doçuras com as da volúpia, eu amenizo o rigor do seu destino. Amam a vida não só quase todos os homens, como até aqueles cujo fio da existência está prestes a ser cortado pela morte, aqueles que devem deixar a vida depois de um bom número de anos. Eles não mostram nenhuma pressa de passar para o número dos mortos. Quanto mais motivos têm os homens para viver contra a própria vontade, tanto menos se enojam da vida, evidenciando que não acham excessivamente longos os seus dias. São um efeito da minha bondade esses velhos que vedes alcançar a nestória decrepitude e que de humano só possuem a figura. Por isso é que são gagos, delirantes, desdentados, encanecidos, calvos, ou, para descrevê-los melhor, com as palavras de Aristófanes, enrugados, corcundas, sem nenhum resto de virilidade. E, não obstante, amam com transporte a vida. Não se limitam esses velhotes insensatos aos prazeres da existência, mas se esforçam ainda por imitar, o quanto podem, a juventude: um enegrece os cabelos brancos; outro esconde com uma cabeleira a cabeça calva; outro põe dentes tomados de empréstimo de algum porco; outro se apaixona loucamente por uma moça e faz por ela loucuras que envergonhariam um rapazinho. Estamos tão habituados a ver um homem todo curvado ao peso dos anos e que já não enxerga a terra em que está para descer, a vê-lo, repito, casar-se com uma mocinha sem dote, e casar-se, certamente, mais para o de outrem do que para o próprio uso, que isso se torna quase um motivo de louvor.


Eis, porém, um quadro ainda mais divertido: aquelas velhas apaixonadas, aqueles cadáveres semivivos que parecem ter saído do Érebo e já estão fedendo à carniça, ainda sentem arder o coração. Lascivas como cadelas no cio, só respiram uma porca sensualidade e dizem descaradamente que sem volúpia a vida não vale nada. Essas velhas cabras ainda fazem o amor e, quando encontram algum Faão (60), costumam remunerar generosamente a repugnância que causam. Então, mais do que nunca, se esmeram na pintura do rosto, passam a vida diante do espelho, arrancam fios brancos de barba, ostentam dois seios flácidos e enrugados, cantam com voz rouquenha e hesitante para despertar a lânguida concupiscência, bebem à grande, intrometem-se nas danças das moças, escrevem cartas amorosas, — eis os meios que essas velhas raposas empregam para dar coragem aos seus custosos campeões. Enquanto isso, a sociedade exclama: — Que velhas malucas! Que velhas malucas! — Mas, se a sociedade tem razão, elas se riem e, imersas nos prazeres, aproveitam a felicidade que lhes proporciono. Eu desejaria que esses censores indiscretos soubessem dizer-me o que será mais estúpido: viver alegre e satisfeito, ou eternamente desesperado até se enforcar com uma corda. Poderão dizer-me que é uma verdadeira infâmia a vida desses velhos e dessas velhas. Não o nego; mas, que importa isso aos meus loucos? Ou são inteiramente insensíveis à desonra, ou então, quando a sentem, sufocam facilmente o remorso. Os meus bons e fiéis súditos têm uma filosofia especial, que lhes faz distinguir muito bem os males imaginários dos males reais. Cai-vos uma pedra na cabeça? Oh! isso, sim, é na realidade um mal! Mas, a desonra, a infâmia, as censuras, as maldições só nos fazem mal quando queremos sentir: desde que não pensemos nisso, deixam de ser um mal. Que mal pode fazer o que murmura a sociedade, quando é certo que intimamente vos aplaudis? Ora, somente eu tenho a virtude de sublimar os homens a esse alto grau de perfeição, e é esse um dos meus maiores predicados. Parece-me, contudo, ouvir alguns filósofos dizerem que uma das maiores desgraças para um homem consiste em ficar louco, em viver no erro, na ilusão e na ignorância. Oh! como estão redondamente enganados! Respondo-lhes, ao contrário, que é justamente nisso que consiste ser homem. Confesso-vos que não sei explicar como podem tratar de infelizes os meus loucos, sendo a loucura, como é, patrimônio universal da humanidade, e quando todos os mortais nascem, educam-se e se conformam com ela.


Parece-me bastante ridículo lastimar um ser que se acha no seu estado normal. Considerareis deplorável o fato do homem não ter asas para voar como os pássaros, ou quatro pés como os quadrúpedes, ou a fronte armada de chifres como o touro? Lamentareis a sorte de um belo cavalo, pelo fato de não ter aprendido gramática ou de não comer bem? Deplorareis um touro, pelo fato de não ser adestrado na palestra? Portanto, assim como o cavalo não é infeliz por ignorar a gramática, assim também não o é o louco, pois a loucura é natural no homem. Mas, os sutis disputadores meus antagonistas continuam a perseguir-me com novos sofismas. Dentre todos os animais — dizem eles — só o homem goza do privilégio de aprender as artes e as ciências, a fim de suprir com os seus conhecimentos às lacunas da natureza. Como se houvesse sombra de verdade em que a natureza, tão previdente e vigilante quanto ao pernilongo e até quanto às ervas ou às florzinhas do campo, fosse esquecer-se unicamente do homem, deixando de lhe fornecer tudo aquilo de que precisa! Oh! que absurdo! Não! As ciências e as artes que tanto decantais não são obra da natureza: foi um certo gênio chamado Teuto (61), grande inimigo do gênero humano, que, por cúmulo da desventura dos homens, as inventou. Eis porque, muito longe de contribuírem para essa felicidade que se pretende apresentar como razão de sua descoberta, as ciências são, ao contrário, extremamente nocivas. Tinha decerto bom faro aquele sábio e prudente rei (62) que, com tanta finura, segundo Platão, reprovou a invenção do alfabeto.


Digamos, pois, francamente, que a ciência e a indústria se introduziram no mundo com todas as outras pestes da vida humana, tendo sido inventadas pelos mesmos espíritos que deram origem a todos os males, isto é, pelos demônios, que por final tiraram da ciência o seu nome (63). Nada disso se conhecia no século de ouro, em que, sem método, sem regra, sem instrução, os homens viviam felizes, guiados pela natureza e pelo próprio instinto. Com efeito, que utilidade teria, naquele tempo, a gramática? Havia apenas a linguagem, e, ainda assim, só era falada para exprimir o pensamento. Não havia necessidade de lógica, porque, tendo todos os mesmos raciocínios, as divergências de opinião não provocavam discussão alguma. Não se conhecia a retórica naquela idade pacífica, em que não havia nem processos, nem conflitos, nem discursos. Nessa época, os legisladores eram inúteis, porque, reinando os bons costumes, não havia necessidade de leis (64). Além disso, aqueles mortais eram religiosíssimos, motivo por que não ansiavam por investigar com ímpia curiosidade os segredos da natureza. Convencidos de que a um pequeno inseto como o homem não é lícito ultrapassar os estreitos limites de sua capacidade, não quebravam a cabeça com a pesquisa das dimensões, dos movimentos, dos efeitos, das origens ocultas dos astros. Também não lhes passava pela imaginação a impertinente idéia de querer saber o que se acha além dos céus.


Mas, aos poucos, foi desaparecendo a inocência do século de ouro, de forma que os maus gênios, como já disse, logo descobriram as artes, mas ainda em pequeno número e muito pouco exercitadas. Em seguida, a superstição dos caldeus (65) e a ociosa leviandade dos gregos criaram mil outras, todas muito oportunas e excelentes para atormentar o espírito. Só a gramática é mais do que suficiente para nos aborrecer durante toda a vida. De todas essas artes, são tidas em maior apreço as que mais se aproximam do bom senso, isto é, da loucura. Mas, que vantagem proporcionam aos que delas fazem profissão? Morrem de fome os teólogos, definham os físicos, caem no ridículo os astrólogos, são desprezados os dialéticos. E só o médico faz fortuna.


A principal vantagem da medicina está em que, quanto mais ignorante, ousado e temerário é quem a exerce, tanto mais estimado é pelos senhores laureados. Além disso, essa profissão, da maneira por que muitos a exercem hoje em dia, se reduz a uma espécie de adulação, quase como a eloqüência.



Depois dos médicos, vêm, imediatamente, os rábulas ou jurisconsultos. Eu não saberia dizer-vos ao certo se esses supostos filhos de Têmis precederam os sequazes de Esculápio: disputam a precedência entre si. O que é fora de dúvida é que os filósofos, quase que por consenso unânime, ridicularizam os advogados e, com muita propriedade, qualificam essa profissão de ciência de burro. Mas, burros ou não, serão sempre eles os intérpretes das leis e os reguladores de todos os negócios. Ao passo que esses senhores estendem os seus latifúndios, o pobre teólogo, depois de ter revistado todas as arcas da divindade, é obrigado a comer favas e a viver numa eterna guerra com os insetos nojentos.



De tudo quanto dissemos acerca das disciplinas, pode-se concluir que as artes mais vantajosas são as que mais se relacionam com a loucura. Por conseguinte, são perfeitamente felizes os homens que, sem ter qualquer relação com as ciências especulativas e práticas, têm como único guia a natureza, a qual não possui nenhum defeito e nunca deixa que se percam os que seguem fiel e exatamente os seus passos, sem a pretensão de sair dos limites da condição humana. A natureza é inimiga de todo artifício, e, de fato, vemos crescer mais felizes as coisas não contaminadas por nenhuma arte.



Permiti que me detenha um pouco sobre o mesmo argumento. Não será verdade que, entre tantas espécies de animais, os que vivem mais felizes são os que não têm nenhuma disciplina e que só a natureza reconhecem como mestra? Quem será mais feliz e admirável do que as abelhas? No entanto, nem sequer possuem todos os sentidos do corpo. Apesar disso, quando é que a arquitetura encontrará alguém que as iguale na construção dos edifícios? Qual foi o filósofo que já instituiu uma república semelhante? Já o cavalo, por estar mais próximo dos sentimentos do homem e sendo por este dominado, participa consideravelmente das calamidades humanas. Acontece, muitas vezes, que esse animal doméstico, em lugar de fugir da batalha, se atira ao perigo, e, na ambição da vitória, um golpe mortal estende-o por terra, obrigando-o a comer poeira junto com o cavaleiro. Já não falo das cruéis mordeduras, das esporadas agudas, da prisão que é a estrebaria, das rédeas, do pesado cavaleiro, em suma, de toda a trágica escravidão a que ele, a exemplo do homem, se sujeitou espontaneamente, na ânsia excessiva de se vingar do veado seu inimigo. Bem mais desejável é a vida das moscas e dos pássaros, por nascerem livres e tomar a natureza o encargo de nutrí-los. Seriam mesmo perfeitamente felizes e tranqüilos se não devessem temer as insídias dos homens. Não imaginais quanto perdem os pássaros da sua primitiva beleza, quando aprendem, nas gaiolas, os nossos cantos. E tanto isso é verdade, sob todos os aspectos, que as produções da natureza ultrapassam de muito as da arte.


Por tudo isso, nunca terei louvado bastante a Pitágoras por se ter transformado em galo. Esse filósofo, em virtude da metempsicose, passou por todos os estados: filósofo, homem, mulher, rei, confidente, peixe, cavalo, rã e creio até que esponja. E, depois de todas essas transmigrações, declarou que o homem era o mais infeliz de todos os animais, pois todos os outros estão satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela natureza, enquanto só o homem se esforça por ultrapassá-los. Aiém disso, Pitágoras costumava antepor os tolos aos sábios e aos grandes. Tal era, também, a opinião de Grilo, um dos companheiros do sensato Ulisses, o qual, tendo sido transformado em porco pela bruxa Circe, preferia grunhir tranqüilo e à vontade num chiqueiro a andar na pista de novos perigos e novas aventuras com o seu general. Parece-me, também, que o próprio Homero, o célebre pai da mitologia, não diverge dessa opinião, pois que, em geral, considera miseráveis todos os mortais e diz que a morte os cerca por toda a parte. Nem mesmo Ulisses, o seu famoso herói e modelo de sabedoria, constitui para ele uma exceção, pois chega a lhe aplicar, várias vezes, o epíteto de infeliz. No entanto, não diz o mesmo de Paris, de Ajax e de Aquiles, que eram loucos. Pelo contrário: como Ulisses fosse engenhoso e astuto e seguisse os conselhos de Minerva, preferindo-os a tudo mais, Homero deplorou a infelicidade desse rei de Ítaca.



Voltando, pois, ao meu assunto, afirmo que os que se aplicam ao estudo das ciências estão muito longe da felicidade e são duplamente loucos, porque, esquecendo-se de sua condição natural e querendo viver como outros tantos deuses, fazem à natureza, com as máquinas de arte, uma guerra de gigantes. De tudo isso, infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos, sem empreenderem nada que esteja acima das forças humanas.



Pois bem! Tratemos de defender esse argumento, não com as antinomias dos estóicos, mas com um exemplo palmar. Deuses imortais, julgai-o! Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente chamados bobos, tolos insensatos e imbecís? Ah! como acho bonitos esses nomes! Quero dizer-vos uma coisa que, à primeira vista, talvez tomeis por extravagante e absurda. Mas, que importa? Apesar disso, não quero deixar de vo-la dizer, tanto mais quanto é superior a qualquer outra verdade.




Respondei-me: é ou não exato que os homens que se julgam privados de sentimento nenhum medo têm da morte? E esse medo — por Baco! — não é um mal indiferente! Além disso, estão isentos dos terríveis remorsos da consciência; não temendo nem fantasmas nem trevas, não são atormentados pela perpétua perspectiva dos males; não são enganados pela vã esperança de futuros bens. Em suma os seus dias não são envenenados pela infinita série de cuidados a que está sujeita a vida. A desonra, o temor, a ambição, a inveja, o amor, a amizade, são coisas inteiramente estranhas para eles, pois gozam da incomparável vantagem de só na forma diferirem dos animais. Mas, isso não basta, pois que, segundo a opinião dos teólogos, chegam a ser impecáveis. Isso posto, tornai a consultar ainda uma vez o vosso íntimo, oh insensatos partidários da sabedoria! Ponderai, examinai atentamente quantas aflições do espírito vos atormentam dia e noite; reuni em bloco, sob os vossos olhos, todos os diversos males da vida; e julgai finalmente, por vós mesmos, quanto é grande a felicidade que proporciono aos meus insensatos. Não gozam eles apenas de um contínuo prazer, rindo, jogando e cantando, mas me parece, além disso, que a alegria, o prazer, a chacota, o riso, seguem-lhes os passos por toda parte. Dir-se-ia que os deuses tiveram a bondade de misturá-los com os homens para edulcorar a tristeza da vida humana. Eu desejaria que notásseis ainda um privilégio que honra muitíssimo os meus súditos. Diversa é a disposição do coração humano de indivíduo para indivíduo; mas, quanto aos meus loucos, todos os homens sentem prazer em possuí-los, como se soubessem que eles são da sua natureza. Desejam-nos com transporte, abraçam-nos, lisonjeiam-nos, alimentam-nos, socorrem-nos em suas necessidades, em suma, permitem-lhes dizer e fazer todo mal que lhe aprouver. Não só não se encontra ninguém que se atreva a contrariá-los, como parece que até as próprias feras, por um natural sentimento da sua inocência, contêm diante deles a sua inata ferocidade. São sagrados para os deuses, para mim sobretudo, motivo porque é muito justo que todos usem para com eles do mesmo respeito.




Que diremos, em seguida, de tantas outras prerrogativas de que gozam os meus sequazes? Os maiores monarcas de tal forma concentraram neles as suas delícias, que muitos não podem nem jantar, nem passear, nem ficar longe deles por uma hora sequer. Que diferença não acharão, pois, entre os seus bobos e os sábios melancólicos, dos quais talvez mantenham um para lhes fazer as honras? E uma tal diferença nada tem de misterioso nem de surpreendente, porque os sábios, em geral, só sabem dizer coisas melancólicas e, às vezes, confiando no próprio saber, permitem-se ofender os delicados ouvidos com pungentes verdades. Os meus loucos, ao contrário, têm uma vida totalmente oposta e observam, para com os príncipes, todas as maneiras que mais costumam agradar, divertindo os outros com mil chacotas e bobagens, com ditos satíricos, com caretas e disparates de fazer qualquer pessoa rebentar de riso. Notai, de passagem, o privilégio que têm os bobos de poder falar com toda a sinceridade e franqueza. Haverá coisa mais louvável do que a verdade? Se bem que, com Platão, o provérbio de Alcebíades diga que a verdade se encontra no vinho e nas crianças, contudo é a mim, particularmente, que convém esse elogio, porque, segundo o testemunho de Eurípedes, tudo o que o tolo encerra no coração ele o traz também impresso na cabeça e o manifesta nas palavras. Mas, os sábios, segundo o mesmo Eurípedes, têm duas línguas, uma para dizer o que pensam e a outra para falar conforme às circunstâncias: quando o querem, têm talento para fazer o preto aparecer como branco e o branco como preto, soprando com a mesma boca o calor e o frio (66) e exprimindo com palavras exatamente o contrário do que sentem no peito.



Não posso deixar, aqui, de lastimar a sorte dos príncipes. Oh! como são infelizes! Inacessíveis à verdades, só contam com a amizade dos aduladores. Mas, ponderará alguém que eles não devem queixar-se senão de si mesmos. Porque será que os príncipes não gostam de prestar ouvidos à verdade? E porque detestam a companhia dos filósofos? Ah! bem vejo que isso se deve ao medo que têm os príncipes de encontrar, entre os filósofos, algum petulante que se atreva a dizer o que é verdadeiro e não o que é agradável! Concedo, de bom agrado, que a verdade seja odiada por todos e muito mais pelos monarcas. Mas, é justamente essa razão o que mais honra os meus loucos. Nem mesmo dissimulam os vícios e os defeitos dos reis. Que digo eu? Chegam, muitas vezes, a insultá-los, a injuriá-los, sem que esses senhores do mundo se ofendam por isso ou se aborreçam. Sabemos que os príncipes, em lugar de ficarem indignados, riem-se de todo coração quando um tolo lhes diz coisas que seriam mais do que suficientes para enforcar um filósofo. Só se costuma defender a verdade quando não se é atingido por ela; ora, só aos loucos os deuses concederam o privilégio de censurar e moralizar sem ofender a ninguém. Quase pela mesma razão é que as mulheres gostam dos loucos e dos bobos, e é por isso que esse sexo é tão inclinado ao riso e às frivolidades. Além disso, qualquer coisa que façam as senhorinhas com essa espécie de pessoas (e às vezes com toda espécie), parece-lhes uma brincadeira ou uma chacota, tão engenhoso e ladino é o belo sexo em colorir e mascarar os seus ardis.



Voltando, pois, à felicidade dos loucos, devo dizer que eles levam uma vida muito divertida e depois, sem temer nem sentir a morte, voam direitinho para os Campos Elísios, onde as suas piedosas e fadigadas almazinhas continuam a divertir-se ainda melhor do que antes. Confrontai, agora, a condição de qualquer sábio com a de um tolo. Imaginai, figurai, um homem venerável, verdadeiro modelo de sabedoria, e observai como faz a sua passagem pela terra. Constrangido desde a infância a consagrar-se ao estudo, passa a flor dos anos nas vigílias, nas aflições, na mais assídua fadiga; e, mal sai dessa dura escravidão, acha-se ainda mais infeliz do que nunca. Por isso é que, devendo viver com economia, com moderação, com tristeza, com severidade, ele se torna cruel e pesado a si mesmo, incômodo e insuportável aos outros. Pálido, magro, enfermiço, ramelento, fraco, encanecido, velho antes do tempo, termina uma vida infeliz com a morte prematura. Mas, que importa ao sábio morrer moço ou velho, quando se pode afirmar, com toda a razão, que nunca viveu? Com efeito, não se pode falar em viver quando não se gozam todos os prazeres da vida. Que vos parece, agora, esse belo retrato do sábio? Agrada-vos?



Mas, já estou esperando que as importunas rãs que são os estóicos (67) venham atacar-me com novos argumentos. E — dirão elas — uma insigne loucura não estará perto do furor, ou melhor, não poderá chamar-se um verdadeiro furor? Mas, que quer dizer ser furioso? Não significará, talvez, ter a mente perturbada? Como me inspiram piedade esses filósofos! O mais das vezes, não sabem o que dizem. Pois bem, se mo permitirem as musas, quero derrubar, quero destruir também esse paládio. Não posso negar que os estóicos sejam argumentadores sutis mas, por pouco que queiram ter reputação de bom senso, devem distinguir duas espécies de loucura, da mesma maneira por que Sócrates, segundo Platão, distinguia duas Vênus (68) e dois Cupidos. Afirmo que nem todas as loucuras tornam igualmente infeliz o homem. Se assim não fosse, Horácio decerto não teria aplicado o epíteto de amável ao furor que invade os poetas e que revela o futuro. O citado Platão não teria incluído, entre os principais bens da vida, o furor dos vates, dos adivinhos e dos amantes, e a Sibila Cumana não teria empregado esse vocábulo para exprimir as penas e os trabalhos de Enéias.



Há, portanto, duas espécies de furor. Um vem do fundo do inferno, e são as fúrias que o mandam para a terra. Essas atrozes e vingativas divindades tiraram da cabeça uma porção de serpentes e atiram suas escamas sobre os homens quando querem divertir-se em atormentá-los. Têm nisso as suas origens o furor da guerra, a hidrópica e devoradora sede do ouro, o infame e abominável amor, o parricídio, o incesto, o sacrilégio, o peso de consciência e todos os outros flagelos semelhantes de que se servem as fúrias para dar aos mortais uma amostra dos suplícios eternos.



Existe, porém, outro furor inteiramente oposto ao precedente, e sou eu quem o proporciona aos homens, que deveriam desejá-lo sempre como o maior de todos os bens. Em que pensais que consista esse furor ou loucura? Consiste numa certa alienação de espírito que afasta do nosso ânimo qualquer preocupação incômoda, infundindo-lhe os mais suaves deleites. É justamente essa divagação que, como um insigne dom dos supremos deuses, deseja Cícero para si, quando diz a Ático que não pode mais suportar o peso de tantos males (69). Um grego, de cujo nome não me recordo, era do mesmo parecer, e a sua história é tão engraçada que eu até quero contá-la. Esse homem era louco de todas as formas: desde manhã muito cedo até tarde da noite, ficava sentado sozinho no teatro e, imaginando que assistia a uma magnífica representação, embora na realidade nada se representasse, ria, aplaudia e divertia-se à grande. Fora dessa loucura, ele era, em tudo o mais, uma ótima pessoa: complacente e fiel com os amigos; terno, cortês, condescendente com a mulher; indulgente com os escravos, não se enfurecendo quando via quebrar-se uma garrafa. Seus parentes deram-se ao incômodo de curá-lo com heléboro; mal, porém, ele voltou ao estado que impropriamente se chama de bom senso, dirigiu-lhe esta bela e sensata apóstrofe: “Meus caros amigos, que fizeram vocês? Pretendem ter-me curado e, no entanto, mataram-me; para mim, acabaram-se os prazeres: vocês me tiraram uma ilusão que constituía toda a minha felicidade”. Tinha sobras de razão esse convalescente, e os que, por meio da arte médica, julgaram curá-lo, como de um mal, de tão feliz e agradável loucura, mostraram precisar mais do que ele de uma boa dose de heléboro.



Ainda não decidi se se deva ou não chamar indistintamente de loucura todo erro de espírito e do senso. É que, em geral, dizemos ser louco todo aquele que, sendo curto de vistas, toma um burro por jumento, ou que, por ter pouco discernimento, considera excelente um mau poema. Ao mesmo tempo, quando um homem comete um estranho erro, não só de senso, mas também de inteligência, nele persistindo longamente, — por exemplo, quando, ao escutar o zurro de um burro, julga ouvir uma sinfonia ou, então, quando, embora pobre e de origem humilde, imagina ser o rei Creso, da Lídia (70) — nesse caso, se diz que o pobrezinho perdeu o miolo. Mas, essa loucura, quando dirigida a um objeto de prazer, como costuma acontecer quase sempre, bastante agradável se torna tanto para os que a têm como para os que são meros espectadores. Assim, essa espécie de loucura é bem mais espalhada do que em geral se pensa. Às vezes, é um louco que se ri de outro louco, divertindo-se ambos mutuamente. Também não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de outro menos do que ele. Mas, na minha opinião, o homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que não saia da espécie que nos é peculiar e que é tão espalhada que eu não saberia dizer se haverá, em todo o gênero humano, um só indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua modalidade. Se alguém, ao ver uma abóbora, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o pobrezinho um louco. A razão disso é que semelhante perturbação raras vezes costuma aparecer entre nós. Mas, quando um marido imbecil adora a mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope, mesmo que ela lhe faça crescer na cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita, bendizendo enormemente o seu destino e dando graças a Deus por o ter unido a semelhante Lucrécia, — ninguém acha que se trate de loucura, porque isso, hoje em dia, é a coisa mais natural deste mundo. Nessa categoria, é preciso incluir também os que desprezam tudo a não ser a caça, não concebendo maior prazer que o de ouvir o rouco som da trompa e os latidos dos cães. Creio mesmo que, ao sentirem o cheiro dos excrementos caninos, imaginam estar cheirando sinomônio. Trata-se de despedaçar uma presa? Oh! incomparável delícia! Degolar, esfolar, cortar um boi ou um carneiro? Ah! é um mister vil, digno somente da ralé! Mas, um bicho do mato? Oh! a honra de cortar um bicho do mato é reservada unicamente às pessoas de alta linhagem! O monteiro-mor, com a cabeça descoberta e de joelhos, pega o facão sagrado para esse sacrifício (pois Diana se ofenderia se se servisse de outro) e, empunhando o ferro com a mão direita, corta religiosamente determinados membros do animal, fazendo tudo com certa ordem e com cerimônias especiais. E, durante a pomposa operação, todo o bando de caçadores acerca-se do sacerdote de Diana, observando profundo silêncio e mostrando, ao assistir ao espetáculo mil vezes visto, a mesma surpresa que teria se fosse a primeira vez. Em seguida, aquele a quem cabe a sorte de provar um pedaço da caça julga ter conquistado ainda mais nobreza. Por fim, os caçadores, depois de levarem a vida perseguindo e comendo caça, não obtêm outro resultado do seu assíduo e fatigante exercício senão o de se terem trasformado também em outros tantos animais selvagens. E, não obstante, intimamente, pensam ter uma vida real.



Outra espécie de homens semelhantes à que há pouco descrevi é constituída por aqueles que se sentem devorados pela mania de construir. Uma vez invadidos por essa irriquieta paixão, nunca se dão por satisfeitos, sendo a sua preocupação contínua a de fazer, edificar, destruir, até que, como Horácio, nessa tarefa de mudar o quadrado em redondo e o redondo em quadrado, acabam por ficar sem casa e sem pão. E com que ficam? Ficam com a doce lembrança de terem passado com prazer um grande número de anos.


Vejamos, agora, os alquimistas, que podem ser considerados os loucos por excelência. Têm a cabeça sempre repleta de novos e misteriosos segredos. O seu único fim é confundir, misturar, modificar a natureza, procurando por terra e por mar não sei que quintessência, que na realidade só se encontra em uma quimérica imaginação. Não julgueis, por isso, que se desgostem diante dos insucessos: ao contrário, cheios de louca e lisonjeira esperança, nunca se arrependem das despesas nem da fadiga, pois são engenhosíssimos em iludir-se a si mesmos e em tornar-se vítimas da própria obstinação. Mas, qual é, em geral, o seu objetivo? Pensando enriquecer-se, gastam tudo, não lhes restando nem mesmo com que construir um pequeno lar. É verdade que esses sonhadores não deixam de ter belíssimos sonhos, tentando tudo quanto é meio imaginável para incitar os outros a correr atrás dessa felicidade. Finalmente, constragidos pela miséria a dar um adeus às suas quiméricas esperanças, acham ainda uma grande compensação em se poderem gabar de ao menos terem formado tão glorioso e nobre projeto. Mas, ao mesmo tempo, censuram a natureza pelo fato de ter dado aos homens uma vida demasiado breve para levar a termo empresa de tamanha importância.