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sexta-feira, julho 07, 2006

GÓRGIAS - Platão - Parte 06 (do Capítulo XXVII a XXXII)

CAPÍTULO XXVII
Sócrates — Polo, no começo de nossa conversa, eu te elogiei por me teres dado a impressão de possuir sólidos conhecimentos de retórica, conquanto te descuidasses do diálogo. E agora, será esse o famoso argumento com que até uma criança conseguiria refutar-me, que me deixa convencido, segundo crês, por teu raciocínio, de que eu estava errado, quando afirmei que o homem injusto não poderia ser feliz? Como poderá ser isso, meu caro, se não estou de acordo com nenhuma de tuas proposições?

Polo — Isso porque não queres; mas no íntimo pensas justamente como estou dizendo.

Sócrates — Criatura bem-aventurada! Procuras convencer-me com recursos de oratória, como nos tribunais costumam fazer os advogados. E assim que uma das partes julga ter refutado o adversário, quando é capaz de trazer em apoio de sua tese muitas testemunhas de grande reputação, ao tempo em que a outra parte só consegue uma, e, às vezes, nem isso. Mas essa espécie de prova carece inteiramente de valor diante da verdade, pois algumas vezes pode alguém ser vitima de depoimento de testemunhas inidôneas, porém tidas na conta de pessoas de bem. É o que se dá no presente caso; a respeito do que afirmaste, quase todos os atenienses e os estrangeiros concordarão contigo; e se quiseres aduzir testemunhas para provar que eu não tenho razão, ai tens Nícias, filho de Nicerato, e seus irmãos, que fizeram o donativo das trípodes que se encontram dispostas em fila no santuário de Dioniso, e também, caso queiras, Aristócrates, filho de Célias, e dono, também, da bela oferenda que se acha no templo de Apoio; e se ainda não te bastarem, tens toda a casa de Péricles, ou quantas famílias aqui de Atenas te aprouver escolher. Eu, porém, embora sozinho, não me rendo; não me convences. Com todo esse teu séqüito de testemunhas falsas, só visas a privar-me de meu bem e da verdade. Ao passo que se eu não obtiver o teu depoimento a favor do que eu disser, embora se trate de uma única testemunha, não me deixarei embalar com a ilusão, de que fiz alguma coisa para resolver a questão com que nos ocupamos, como também nada terás conseguido, se não me obtiveres como única testemunha a teu favor e mandares passear todas as outras. Há, de fato, certo modo de refutação que tu aceitas e, contigo, muita gente; mas há outro, também, a que, por meu lado, me apego. Comparemo-los, para vermos em que diferem. O assunto sobre que discutimos não é de valor somenos, mas talvez mesmo o que mais nos importa investigar e fora vergonhoso desconhecer. Pois sua essência própria consiste em conhecermos ou ignorarmos quem é ou quem não é feliz. Para voltarmos ao nosso te ma: és de opinião que pode ser feliz quem pratica o mal e é injusto, tal como Arquelau, que consideras feliz, apesar de seus crimes. Podemos admitir que essa é a tua maneira de pensar?

Polo — Perfeitamente.



CAPÍTULO XXVIII
Sócrates — Pois afirmo que isso é impossível; nesse ponto, estamos em desacordo. Muito bem. Quem comete injustiça poderá ser feliz, na hipótese de vir a ser punido e castigado?

Polo — De forma alguma, pois nesse caso seria infeliz ao máximo.

Sócrates — E se porventura o criminoso não recebesse nenhuma punição, de acordo com o que disseste, seria feliz?

Polo — É o que afirmo.

Sócrates — Pois segundo a minha maneira de pensar, Polo, o homem injusto ou que comete injustiça, de qualquer forma é infeliz, e mais infeliz será, ainda, se não for punido, porém algum tanto menos se for castigado e punido pelos deuses e pelos homens.

Polo — É absurdo, Sócrates, o que afirmas.

Sócrates — Vou tentar, companheiro, convencer-te da minha maneira de pensar. Considero-te meu amigo. São os seguintes os pontos sobre que não concordamos. Examina tu mesmo. Em qualquer parte de minha exposição, afirmei que é pior cometer alguma injustiça do que ser vítima de injustiça.

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Tu, porém, que é ser vitima de injustiça.

Polo — Isso mesmo.

Sócrates — Disse, também, que são infelizes as pessoas que cometem injustiça, o que foi refutado por ti.

Polo — Sim, por Zeus.

Sócrates — Pelo menos, Polo, pensas desse modo.

Polo — E com razão, quero crer.

Sócrates — Por tua vez, afirmaste serem felizes os que cometem injustiça, no caso de escaparem ao castigo.

Polo — Exatamente.

Sócrates — E eu digo que são esses, precisamente, os mais infelizes, sendo-o um pouco menos os que recebem castigo. Não queres rebater também esse ponto?

Polo — Essa proposição é mais difícil de refutar do que a outra, Sócrates.

Sócrates — Não é bem isso, Polo; é impossível; a verdade nunca poderá ser contestada.

Polo — Que disseste? Se um indivíduo é apanhado e detido na tentativa criminosa de apoderar-se do poder, é posto a tratos e mutilado; queimam-lhe os olhos, e depois de lhe infligirem as maiores e mais variadas torturas, e de ver ele que a mulher e os filhos são tratados da mesma maneira, por último é colocado na cruz ou besuntado com breu e queimado vivo: esse indivíduo será mais feliz do que se não for descoberto, conseguir tornar-se tirano e, como senhor absoluto da cidade, continuar durante toda a vida a fazer o que bem lhe parecer, objeto de inveja e de admiração tanto dos seus concidadãos como dos estrangeiros? Isso é que consideras impossível de refutar?



CAPÍTULO XXIX
Sócrates — Tornas a lançar mão de um espantalho, meu bravo Polo, porém não me refutas. Há pouco recorreste a testemunhas. De qualquer forma, ajuda-me a avivar a memória sobre uma coisinha de nada. A tentativa injusta de apoderar-se do poder, não foi isso o que disseste?

Polo — Exatamente.

Sócrates — Pois eu sou de parecer que nem um nem outro pode ser considerado mais feliz, nem o que alcançou injustamente a tirania, nem o que foi preso e castigado, porque entre dois desgraçados nenhum pode ser feliz; todavia, o mais infeliz é o que escapou e se tornou tirano. Que é isso, Polo, estás rindo? Será essa uma nova modalidade de refutação, rir de alguém que afirma alguma coisa, sem opor-lhe qualquer argumento?

Polo — Não te consideras refutado, Sócrates, depois de afirmares coisas que nenhum homem poderia admitir? Basta perguntares a qualquer dos presentes.

Sócrates — Não sou político, Polo; sim, no ano passado, fui eleito para o conselho, e como minha tribo exercesse o pritanato e eu tivesse de recolher os votos, pus-me a rir, sem saber como fazer. Não me concites, portanto, a contar os votos dos presentes, e se não dispões de melhor processo de refutação, cede -me o teu lugar, conforme sugeri há pouco, e faze a experiência da argumentação que me parece indicada. De minha parte, só sei aduzir a favor do que afirmo uma única testemunha, justamente a pessoa com que estiver argumentando, sem dar maior importância à opinião da maioria; só conheço o modo de obter esse único voto; às demais pessoas não me dirijo. Vê, portanto, se concordas em deixar que eu conduza a argumentação e em responder a minhas perguntas. Estou convencido de que tanto eu como tu, e os homens em geral, consideramos pior cometer uma injustiça do que sofrê-la, como é pior não ser punido do que sê-lo.

Polo — Pois eu afirmo que nem eu nem ninguém compartilha essa opinião. Sendo assim, preferirias sofrer alguma injustiça a praticá-la?

Sócrates — Tal qual como tu e como todo o mundo.

Polo — De jeito nenhum; nem eu, nem tu, nem ninguém.

Sócrates — Estás resolvido a responder-me?

Polo — Perfeitamente. Estou ansioso para saber o que vais dizer.

Sócrates — Nesse caso, responde-me como se só agora eu te interrogasse: Polo, que te parece pior, come ter alguma injustiça ou sofrer injustiça?

Polo — Na minha opinião, sofrer injustiça.

Sócrates — E agora, que é mais feio: cometer injustiça ou sofrê-la? Responde.

Polo — Cometer injustiça.



CAPÍTULO XXX
Sócrates — Então, por ser mais feio, é também um mal maior.

Polo — De jeito nenhum.

Sócrates — Compreendo; não aceitas como equivalentes o belo e o bom, o mau e o feio.

Polo — Não, de fato.

Sócrates — É o seguinte: a todas as belas coisas: corpos, cores, figuras, sons, ocupações, dás o nome de belas sem nenhuma referência a qualquer outra coisa? Para começarmos pelos corpos belos, não os qualificas de belos com vista à utilidade em suas respectivas aplicações, ou com relação ao prazer particular que possam proporcionar às pessoas que os contemplam? Afora isso, saberás dizer mais alguma coisa a respeito dos corpos belos?

Polo — Não posso.

Sócrates — E com relação a tudo o mais, as figuras e as cores, não é por causa do prazer, ou da utilidade, ou por ambas as coisas que lhes dás o nome de belas?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — E o mesmo não se passa com os sons e tudo o que se relaciona com a música?

Polo — Sim.

Sócrates — E também no que respeita às leis e às ocupações, nenhuma é bela, por outro motivo, mas apenas por ser útil, ou agradável, ou por ambas as coisas.

Polo — É também como penso.

Sócrates — E o mesmo não se dá com a beleza das ciências?

Polo — Sem dúvida; tua explicação, Sócrates agora é muito mais bonita, com definires o belo por meio do prazer e do bem.

Sócrates — Logo, o feio será definido por meio de seus contrários, a dor e o mal?

Polo — Necessariamente.

Sócrates — Então, sempre que entre duas coisas belas uma é superior à outra, é que a ultrapassa por uma dessas qualidades, ou por ambas, vindo a ser mais bela ou pelo prazer, ou pela utilidade, ou por esses dois fatores ao mesmo tempo.

Polo — Sem dúvida.

Sócrates — E entre duas coisas feias, quando uma é mais feia do que a outra, é porque a ultrapassa em sofrimento ou em maldade, para ser mais feia. Não é a conclusão que se nos impõe?

Polo — Sim.

Sócrates — E agora, que estávamos a dizer a respeito de cometer injustiça ou sofrer injustiça? Não disseste que sofrer injustiça é pior, mas que é mais feio cometer injustiça?

Polo — Disse.

Sócrates — Ora, se cometer injustiça é mais feio do que sofrer injustiça, será também mais doloroso, vindo a ser mais feio, justamente, por ultrapassar o outro em sofrimento, ou em maldade, ou em ambas as coisas. Não somos forçados a aceitar também essa conclusão?

Polo — Como não?



CAPÍTULO XXXI
Sócrates — Examinemos, então, em primeiro lugar, se é mais molesto praticar injustiça do que ser vitima dela, e se mais sofrem os que a praticam do que suas vitimas.

Polo — Quanto a isso, não, Sócrates.

Sócrates — Não é, portanto, pelo sofrimento que eles as ultrapassam.

Polo — Não, evidentemente.

Sócrates — Se não é pelo sofrimento, também não será por ambos.

Polo — E claro.

Sócrates — Então será pelas outras qualidades.

Polo — Sim.

Sócrates — Pelo mal.

Polo — É possível.

Sócrates — Ora, se eles as ultrapassam em maldade, cometer injustiça é pior do que sofrer injustiça.

Polo — É mais do que claro.

Sócrates — Ora, não é admitido pela maioria dos homens, e não concordaste há pouco, que é mais feio cometer injustiça do que ser vítima de injustiça?

Polo — Sim.

Sócrates — Como também vimos que é maior mal.

Polo — Parece que sim.

Sócrates — E tu, preferirias o pior e mais feio ao que o for menos? Não hesites em responder, Polo; em nada te prejudicarás; entrega -te com confiança à discussão, como se o fizesses a um médico, e responde sim ou não ao que eu te perguntar.

Polo — Não o preferiria, Sócrates.

Sócrates — E haverá quem o preferisse?

Polo — Penso que não, de acordo com a maneira por que foi formulada a questão.

Sócrates
— Eu tinha, portanto, razão de dizer que nem eu, nem tu, nem ninguém preferiria cometer injustiça a ser vítima dela, por ser dos dois males o maior.

Polo — Parece que sim.

Sócrates — Como estás vendo, Polo, confrontados nossos argumentos, revelaram-se muito desiguais. Com o teu, todo o mundo está de acordo, menos eu, ao passo que, de meu lado, me dou por satisfeito de seres a única pessoa que concorda comigo e de testemunhares a meu favor; recolho o teu sufrágio e abandono os demais. Demos isso por assentado.

Passemos agora ao exame do outro ponto sobre que estávamos em desacordo: se o maior mal para quem comete injustiça é ser punido, conforme sustentas, ou escapar ao castigo, de acordo com o meu modo de pensar? Consideremos a questão da seguinte maneira: sofrer pena por alguma falta ou ser punido justamente, não te parece que seja a mesma coisa?

Polo — Sem dúvida.

Sócrates — E não poderias afirmar que tudo o que é justo é belo, enquanto justo? Reflete antes de falar.

Polo — Parece-me que é assim mesmo, Sócrates.



CAPÍTULO XXXII
Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém faz alguma coisa, não é forçoso haver quem sofra os efeitos do seu ato?

Polo — Penso que sim.

Sócrates — E quem sofre a ação do agente, não ficará como o outro faz? O que digo é o seguinte: se alguém bate, não é forçoso haver alguma coisa batida?

Polo — Necessariamente.

Sócrates — E se quem bate o faz com força e de pressa, não ficará batida do mesmo modo a coisa batida?

Polo — Sim.

Sócrates — Logo, o sofrimento da coisa batida será como a ação de quem bate?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — E não será também certo que se alguém queima, alguma coisa ficará queimada?

Polo — Como não?

Sócrates — E se ele queimar em excesso e a ponto de produzir muita dor, a coisa queimada ficará conforme queima o queimador?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — E se alguém cortar, não se dará a mesma coisa? Algo ficará cortado.

Polo — Sim.

Sócrates — E no caso de ser grande o corte, profundo e doloroso, não ficará a coisa cortada de acordo com o corte que lhe infligiu o cortador?

Polo — É claro.

Sócrates — Vê agora se concordas, em tese, com o que eu disse há pouco, que conforme seja a ação do agente, assim será o sofrimento do paciente.

Polo — Concordo.

Sócrates — Concedido esse ponto, dize-me se ser punido é sofrer ou agir?

Polo — Sofrer, Sócrates; forçosamente.

Sócrates — Da parte de alguém que atua?

Polo — Como não? Da parte de quem castiga.

Sócrates — E quem castiga com razão, castiga justamente?

Polo — Sim.

Sócrates — E pratica uma ação justa, ou não?

Polo — Justa.

Sócrates — Então, quem é castigado em punição de alguma falta, sofre justamente?

Polo — Parece que sim.

Sócrates — E não concordamos que o justo é também belo?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Nesse caso, quem castiga comete uma ação bela, e a pessoa punida sofre essa mesma ação?

Polo — Sim.