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sexta-feira, julho 07, 2006

GÓRGIAS - Platão - Parte 02 (do Capítulo I a VII)

CAPÍTULO I
Na guerra e no combate, Sócrates, segundo o provérbio, é que é preciso proceder dessa maneira.

Sócrates — Será que chegamos atrasados e, como se diz, depois da festa?

Cálicles — Sim, e uma festa citadina! Agora mesmo, Górgias nos expôs um mundo de coisas belas.

Sócrates — A culpa, Cálicles, é do nosso amigo Querefonte, que nos reteve na ágora.

Querefonte — Não faz mal, Sócrates; vou reparar o dano. Como amigo meu, que é, Górgias falará para nós, ou agora, ou noutra ocasião, conforme preferires.

Cálicles — Que estás dizendo, Querefonte! Sócrates deseja ouvir Górgias?

Querefonte — Para isso é que estamos aqui.

Cálicles — Então, quando quiserdes, ide a minha casa, pois Górgias hospedou-se comigo e vos falará.

Sócrates
— É muita gentileza de tua parte, Cálicles. Mas, dispor-se-á ele, de fato, a conversar conosco? Desejo perguntar-lhe em que consiste a força de sua arte e o que é que ele professa e ensina. Quanto ao resto da exposição, poderá ficar, como disseste, para outra oportunidade.

Cálicles — Não há como falares tu mesmo, Sócrates. Isso, aliás, faz parte de sua exposição. Neste momento, convidou as pessoas ali presentes a lhe dirigirem as perguntas que quisessem, comprometendo-se a responder a todas.

Sócrates — Ótimo, Querefonte . Então, fala -lhe.

Querefonte — Que devo perguntar-lhe?

Sócrates — O que ele é.

Querefonte — Que queres dizer com isso?

Sócrates — Se ele, por exemplo, fabricasse sapatos, responderia que trabalhava com couro. Ou não compreendes o que eu falo?




CAPÍTULO II
Querefonte — Compreendo e vou perguntar-lhe. Dize -me, Górgias: é verdade o que afirmou o nosso amigo Cálicles, que te comprometes a responder a seja o que for que te perguntarem?

Górgias — É verdade, Querefonte; foi isso mesmo que declarei há pouco, e posso assegurar-te que há muitos anos ninguém me apresentou uma questão nova.

Querefonte — Tanto mais fácil, Górgias, para responderes.

Górgias — Depende apenas de ti, Querefonte, fazer a experiência.

Polo — Sim, por Zeus. Mas, se estiveres de acordo, Querefonte, faze a experiência comigo. Acho que Górgias deve estar cansado de tanto falar.

Cálicles — Como assim, Polo? Pensas que podes responder melhor do que Górgias?

Polo — E o que vai nisso? Basta que seja suficiente para ti.

Cálicles — Nada me vai nisso. Então, se assim preferes, responde.

Polo — Pergunta.

Cálicles — Vou perguntar. Se Górgias fosse profissional da arte que seu irmão Heródico exerce, por que nome certo o designaríamos? O mesmo que damos àquele, não é verdade?

Polo — Perfeitamente

Cálicles — Se disséssemos, portanto que ele era médico, ter-nos -íamos expressado com correção.

Polo — Sim.

Cálicles — E caso ele fosse perito na arte de Aristofonte, filho de Aglaofonte, de que modo lhe chamaríamos com acerto?

Polo — Pintor, evidentemente.

Cálicles — E agora, de que arte ele entende e por que nome certo devemos denominá-lo?

Polo — Querefonte, no mundo há muitas artes experimentais que a experiência descobriu. A experiência faz que nossa vida seja dirigida de acordo com a arte, e a inexperiência a entrega ao acaso. Uns são proficientes numas; outros, noutras; cada um a seu modo; os melhores o são nas melhores. Górgias é um destes e participa da mais nobre das artes.

Sócrates — Górgias, parece que Polo tem muita prática de falar; porém não cumpre o que prometeu a Querefonte.

Górgias — Como assim, Sócrates?

Sócrates — O que digo é que ele não responde exatamente ao que lhe é perguntado.

Górgias — Então, se quiseres, tu mesmo podes interrogá-lo.

CAPÍTULO III
Sócrates — Não; porém, se não te aborreceres de responde r, com a maior satisfação te dirigirei as perguntas. Do que Polo falou, tornou-se-me evidente que ele se tem dedicado mais à arte denominada retórica do que à da conversação.

Polo — Como assim, Sócrates?

Sócrates — Porque, Polo, te havendo perguntado Querefonte em que arte Górgias é experiente, elogias a sua arte como se alguém a tivesse diminuído, porém não declaraste qual ela seja.

Polo — Não respondi que é a mais bela?

Sócrates — Respondeste; mas ninguém te interpelou sobre o valor da arte de Górgias, porém qual seja ela e que nome, por isso, devemos dar a Górgias.Assim como respondeste antes a Querefonte, com clareza e concisão quando ele se dirigiu a ti, declara -nos agora qual é a arte de Górgias e que nome devemos dar a este. Mas é preferível, Górgias, que tu mesmo fales. Por que modo deves ser designado, como profissional de que arte?

Górgias — De retórica, Sócrates.

Sócrates — Então, teremos de dar-te o nome de orador?

Górgias — E excelente orador, Sócrates, o que só de nomear me envaidece, se quiseres aplicar no meu caso a linguagem de Homero.

Sócrates
— É isso mesmo que eu quero.

Górgias — Então, chama-me assim.

Sócrates — E não devemos também dizer que podes ensinar tua arte a outras pessoas?

Górgias — E é o que, de fato, anuncio, não apenas aqui como em outras localidades.

Sócrates — E não consentirias, Górgias, em prosseguir numa troca de perguntas e respostas, assim como estamos conversando, e em deixar para outra ocasião os discursos prolixos que Polo iniciou? Porém cumpre o que nos prometeres e dispõe-te a responder por maneira concisa às perguntas que te forem apresentadas.

Górgias — Há respostas, Sócrates, que exigem exposição mais particularizada. Contudo, procurarei esforçar-me em ser breve, pois um dos pontos de que me gabo é de ninguém dizer as mesmas coisas com maior concisão do que eu.

Sócrates — Isso é que é preciso, Górgias; dá-me uma amostra desse teu talento, a breviloquência, e deixemos para outra ocasião os discursos estirados.

Górgias — Assim farei, para que venhas a confessar que nunca ouviste ninguém falar com maior concisão.




CAPÍTULO IV
Sócrates — Então, comecemos. Já que te apresentas como entendido na arte da retórica e também como capaz de formar oradores: em que consiste particularmente a arte da retórica? Assim, por exemplo, a arte do tecelão se ocupa com o preparo das roupas, não é verdade?

Górgias — Sim.

Sócrates — E a música, com a composição do canto?

Górgias
— Sim.

Sócrates — Por Hera, Górgias! Tuas respostas me agradam; mais concisas não poderiam ser.

Górgias — Eu também, Sócrates, acho que estou respondendo como é preciso.

Sócrates — Dizes bem. Então, responde -me da mesma forma a respeito da retórica: qual é o objeto particular do seu conhecimento?

Górgias — Os discursos.

Sócrates — De que discursos, Górgias? Porventura os que indicam aos doentes o regime a ser seguido para sararem?

Górgias — Não.

Sócrates — Logo, a retórica não diz respeito a todos os discursos.

Górgias — É claro que não.

Sócrates — No entanto, ela ensina a falar.

Górgias — Sim.

Sócrates — E, por conseguinte, também a compreender os assuntos sobre que ensina a falar.

Górgias — Como não?

Sócrates
— E a medicina, a que nos referimos há pouco, não deixa também os doentes capazes de pensar e de falar?

Górgias — Necessariamente.

Sócrates — Sendo assim, a medicina, ao que parece, também se ocupa com discursos?

Górgias — Sim.

Sócrates — Os que se referem às doenças?

Górgias — Exatamente.

Sócrates — E a ginástica, não se ocupará também com discursos relativos à boa ou má disposição do corpo?

Górgias — Sem dúvida.

Sócrates — O mesmo se dá com as demais artes, Górgias, ocupando-se cada uma com discursos relativos ao objeto de que seja propriamente arte.

Górgias — É evidente.

Sócrates — Então, por que não dás o nome de retórica às outras artes, se todas elas se ocupam com discursos, e chamas à retórica arte dos discursos?

Górgias — É porque nas outras artes, Sócrates, todo o conhecimento, por assim dizer, diz respeito a trabalhos manuais ou a práticas do mesmo tipo, ao passo que a retórica nada tem que ver com a atividade das mãos, sendo alcançados por meio de discursos todos os seus atos e realizações. E por isso que eu considero a retórica arte do discurso, e com razão, segundo penso.



CAPÍTULO V
Sócrates — Será que compreendi tua definição? Daqui a pouco ficarei sabendo isso melhor. Responde -me ao seguinte: temos artes; não é verdade?

Górgias — Sim.

Sócrates — Entre essas artes, quero crer, algumas há em que predomina a atividade, podendo ser exercidas em silêncio, como se dá com a pintura, a escultura e mais algumas. São essas, segundo penso, que tu dizes não terem nenhuma relação com a retórica. Ou não?

Górgias — Apanhaste muito bem o meu pensamento, Sócrates.

Sócrates — Porém artes há que tudo realizam por meio da palavra, sem recorrerem de nenhum modo, por assim dizer, à ação, ou muito pouco, como a aritmética, o cálculo, a geometria, o gamão e muitas mais, em que os discursos se equilibram com as ações; mas, na maioria, eles predominam, de forma que toda a eficiência de suas realizações depende essencialmente da palavra. Entre essas, quero crer, é que incluis a retórica.

Górgias — É muito certo.

Sócrates — Todavia, creio que não dás o nome de retórica a nenhuma das artes mencionadas, embora tenhas dito expressamente que a retórica é a arte cuja força consiste no discurso. Se algum trocista quisesse especular com tuas palavras, poderia perguntar-te: Então, Górgias, é à aritmética que dás o nome de retórica? Porém quero crer que não denominas retórica nem a aritmética nem a geometria.

Górgias — Estás certo, Sócrates, e interpretas bem o meu pensamento.



CAPÍTULO VI
Sócrates — Cabe -te, agora, completar a resposta á pergunta que te apresentei. Uma vez que a retórica é dessas artes que se valem principalmente da palavra, e havendo outras nas mesmas condições, procura explicar agora como atinge sua finalidade por meio da palavra a arte da retórica? É como se alguém me interpelasse acerca de qualquer das artes que mencionei: Sócrates, que é a aritmética? Eu responderia como o fizeste há pouco, que é uma arte que se exerce por meio da palavra. E se ele voltasse a perguntar: com relação a quê? Responderia: Com relação ao conhecimento do par e do ímpar e à quantidade de cada um. E no caso de insistir: E como dizes que seja a arte do cálculo? Responderia que é também uma arte que tudo realiza por meio da palavra. E se tornasse a perguntar: Com relação a quê? Eu me expressaria como os redatores de decretos das assembléias do povo: Tudo o mais como antes. O cálculo é como a aritmética, pois diz também respeito ao par e ao ímpar, diferençando-se o cálculo em não considerar apenas em si mesmo o valor numérico do par e do ímpar, mas também em suas relações recíprocas. E se, depois de interrogar-me a respeito da astronomia e de eu dizer que ela também consegue tudo por meio da palavra, insistisse essa pessoa: E com que se relacionam os discursos da astronomia, Sócrates? Dir-lhe-ia que se relacionam com o curso dos astros, do sol e da lua, e de suas relativas velocidades.

Górgias — E terias respondido com muito acerto, Sócrates.

Sócrates — É tua, agora, a vez, Górgias. A retórica está incluída entre as artes que se exercem e atingem sua finalidade por meio de discursos, não é verdade?

Górgias — É isso mesmo.

Sócrates — Então, dize a respeito de quê. A que classe de coisas se referem os discursos de que se vale a retórica?

Górgias — Aos negócios humanos, Sócrates, e os mais importantes.



CAPÍTULO VII
Sócrates — Mas isso, Górgias, também é ambíguo e nada preciso. Creio que já ouviste os comensais entoar nos banquetes aquela cantilena em que fazem a enumeração dos bens e dizer que o melhor bem é a saúde; o segundo, ser belo; e o terceiro, conforme se exprime o poeta da cantilena, enriquecer sem fraude.

Górgias — Já ouvi; mas, a que vem isso?

Sócrates — E que poderias ser assaltado agora mesmo pelos profissionais dessas coisas elogiadas pelo autor da cantilena, a saber, o médico, o pedótriba e o economista, e falasse em primeiro lugar o médico: Sócrates, Górgias te engana; não é sua arte que se ocupa com o melhor bem para os homens, porém a minha. E se eu lhe perguntasse: Quem és, para falares dessa maneira? Sem dúvida responderia que era médico. Queres dizer com isso que o produto de tua arte é o melhor dos bens? Como poderia, Sócrates, deixar de sê-lo, se se trata da saúde? Haverá maior bem para os homens do que a saúde? E se, depois dele, por sua vez, falasse o pedótriba: Muito me admiraria, também, Sócrates, se Górgias pudesse mostrar algum bem da sua arte maior do que eu da minha. A esse, do meu lado, eu perguntara: Quem és, homem, e com que te ocupas? Sou professor de ginástica, me diria, e minha atividade consiste em deixar os homens com o corpo belo e robusto. Depois do pedótriba, falaria o economista, quero crer, num tom depreciativo para dois primeiros: Considera bem, Sócrates, se podes encontrar algum bem maior do que a riqueza, tanto na atividade de Górgias como na de quem quer que seja. Como! Decerto lhe perguntáramos: és fabricante de riqueza?

Responderia que sim. Quem és, então? Sou economista. E achas que para os homens o maior bem seja a riqueza? Voltaríamos a falar-lhe. Como não! Me responderia No entanto, lhe diríamos, o nosso Górgias sustenta que a arte dele produz um bem muito mais importante do que a tua. E fora de dúvida que, a seguir, ele me perguntaria: Que espécie de bem é esse?

Górgias que o diga. Ora bem, Górgias; imagina que tanto ele como eu te formulamos essa pergunta, e responde-nos em que consiste o que dizes ser para os homens o maior bem de que sejas o autor.

Górgias — Que é, de fato, o maior bem, Sócrates, e a causa não apenas de deixar livres os homens em suas próprias pessoas, como também de torná-los aptos para dominar os outros em suas respectivas cidades.

Sócrates — Que queres dizer com isso?

Górgias — O fato de por meio da palavra poderem convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política. Com semelhante poder, farás do médico teu escravo, e do pedótriba teu escravo, tornando-se manifesto que o tal economista não acumula riqueza para si próprio, mas para ti, que sabes falar e convencer as multidões.