VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR



sexta-feira, julho 07, 2006

GÓRGIAS - Platão - Parte 05 (do Capítulo XX a XXVI)

CAPÍTULO XX

Sócrates - Na medicina, como disse, insinuou-se a bajulação culinária; na ginástica, seguindo o mesmo processo, a capelista, falsa, nociva, ignóbil e indecorosa, que, por meio das formas, das cores, dos esmaltes e da indumentária, de tal modo seduz os homens que, andando sempre estes no encalço da beleza estranha, descuidam da que lhes é própria e que só se obtém por meio da ginástica. Para não ser prolixo, vou usar a linguagem dos geômetras — talvez assim possas acompanhar-me — para dizer que o gosto da indumentária está para a ginástica como a culinária está para a medicina, ou melhor: a indumentária está para a ginástica assim como a retórica está para a legislação; e também: a culinária está para a medicina como a retórica está para a justiça. Essa, como disse, é a diferença natural de todas elas; mas, em conseqüência da vizinhança, sofistas e oradores se misturam e passam a ocupar-se com as mesmas coisas, sem que eles próprios saibam qual seja, ao certo, seu fim, e muito menos os homens. De fato, se a alma não estivesse sobreposta ao corpo e este se governasse a si mesmo, e se aquela não tivesse discernimento e não separasse da medicina a culinária, e apenas o corpo tivesse de julgar, de acordo com os prazeres que pudesse auferir de cada uma delas, predominaria, meu caro Polo, aquilo de Anaxágoras — isto é matéria de teu conhecimento — a saber: todas as coisas se confundiriam sem que fosse possível distinguir a medicina, a saúde e a culinária. Ficaste sabendo, agora, o que penso a respeito da retórica: é a antítese para a alma do que a cozinha é para o corpo. É possível que minha conduta seja inconseqüente, pois, tendo-te proibido discursos estirados, eu próprio me alonguei desta maneira. Porém acho que meu caso é desculpável. Enquanto me exprimi em termos curtos, não me compreendias nem sabias interpretar minhas respostas e exigias sempre explicações. Por isso, se eu também me mostrar incapaz de aproveitar tuas respostas, espicha, do mesmo modo, teus discursos. Mas, se tal não se der, permite que faça delas o uso que entender; é meu direito. E agora, se minha resposta te servir para alguma coisa, faze o que quiseres.



CAPÍTULO XXI
Polo — Como assim? Achas que a retórica seja bajulação?

Sócrates — Uma parte da bajulação, foi o que eu disse. Com essa idade, Polo, já estás esquecido? Como ficarás depois de velho?

Polo — És, então, de parecer que nas cidades os bons oradores são tidos na conta de bajuladores e não gozam de nenhuma consideração?

Sócrates — Apresentas-me uma pergunta ou inicias um discurso?

Polo — É uma pergunta.

Sócrates — Sou de opinião que eles não são considerados.

Polo — Como não são considerados? Não gozam de grande influência nas cidades?

Sócrates — Não, se compreenderes por influência algo bom para quem a exerce.

Polo — Essa é, justamente, a minha maneira de pensar.

Sócrates — Então, acho que de todos os cidadãos são os oradores os que têm menor poder.

Polo — Como assim? Não podem matar, como os tiranos, a seu bel-prazer, não confiscam os bens alheios e não expulsam das cidades quem eles querem?

Sócrates — Pelo cão! Continuo em dúvida, Polo, a cada palavra do que dizes, se tu mesmo falas e apresentas tua maneira de pensar, ou se me estás interrogando.

Polo — Sim, interrogo-te.

Sócrates — Muito bem, amigo. Nesse caso, apresentaste duas perguntas ao mesmo tempo.

Polo — Como duas?

Sócrates — Há pouco não disseste mais ou menos que os oradores, tal como os tiranos, podem matar quem bem quiserem, confiscar os bens alheios ou banir qualquer pessoa?

Polo — Disse.



CAPÍTULO XXII
Sócrates — Por isso, declaro-te que se trata de duas questões distintas, e vou responder separadamente a ambas. Afirmo-te, portanto, Polo, que os oradores e os tiranos são os que menos podem nas cidades, conforme disse há pouco, pois não fazem o que querem, por assim dizer, mas apenas o que se lhes afigura melhor.

Polo — E não é isso, justamente, poder muito?

Sócrates — Não; pelo menos foi o que Polo disse.

Polo — Eu disse não? O que eu disse foi sim.

Sócrates — Por... isso, não; o que afirmaste foi que o poder é um bem para quem o possui.

Polo — É o que digo, de fato.

Sócrates — E achas que seja um bem para qualquer pessoa fazer o que lhe parece ser o melhor, quando está privado da razão? Julgas que isso é poder muito?

Polo — Penso que não.

Sócrates — Logo, para me contestares, terás de provar que os oradores têm bom senso e que a retórica é uma arte, não simples bajulação. Porém, se não conseguires refutar-me, nem os oradores, que fazem nas cidades o que bem lhes apraz, nem os próprios tiranos possuirão, com isso, nenhum bem, no caso de ser o poder um bem, como tu mesmo o disseste, e ser um mal, conforme também concordaste, fazer alguém o que lhe aprouver, quando privado de bom senso. Ou não?

Polo — De acordo.

Sócrates — Como, então, poderão ser os oradores todo-poderosos nas cidades, ou os tiranos, se Polo não provou a Sócrates que eles podem fazer o que querem?

Polo — Esse homem...

Sócrates — Nego que possam fazer o que querem. Contesta-me isso.

Polo — Não acabaste de dizer que eles fazem o que lhes parecer ser o melhor!

Sócrates — E continuo a sustentar o que disse.

Polo — Então, fazem o que querem.

Sócrates — Nego.

Polo — Apesar de fazerem o que lhes apraz?

Sócrates — Sim.

Polo — Defendes absurdos, Sócrates; verdadeiros disparates.

Sócrates — Não me acuses, caríssimo Polo, por falar-te em teu próprio estilo. Se fores capaz de interrogar-me, prova que estou enganado; caso contrário, passarás a responder.

Polo — Prefiro responder, para vir, afinal, a saber o que queres dizer.



Capítulo XXIII
Sócrates — Que te parece que os homens queiram, quando fazem alguma coisa: o que fazem propriamente, ou o que têm em vista quando fazem o que fazem? Por exemplo, os que tomam remédio por indicação do médico, és de parecer que querem o que fazem, a saber, tomar remédio e sofrer, ou querem sarar, em vista do que o tomam?

Polo — Sarar, evidentemente, em vista do que o tomam.

Sócrates — O mesmo acontece com os que viajam ou empreendem qualquer negócio lucrativo: não querem nunca o que fazem a cada momento, pois quem é que deseja corre r os riscos de uma viagem e ter trabalhos? O que todos querem, segundo penso, é aquilo por causa do que navegam: ficar ricos. Com a mira na riqueza é que viajam.

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — E com tudo o mais não é da mesma maneira? Quem faz alguma coisa visando a determinado fim, não quer aquilo que faz, mas o fim que tinha em vista, quando fez o que fez.

Polo — É certo.

Sócrates — E entre tudo o que existe, não haverá o que, não sendo bom nem sendo mau, forma precisamente um meio -termo, nem bom nem ma u?

Polo — Necessariamente, Sócrates.

Sócrates — Não dirás que a sabedoria é um bem, como também o são a saúde, a riqueza, e tudo o mais do mesmo gênero? E que seus opostos são outros tantos males?

Polo — Sem dúvida.

Sócrates — E as coisas que não são nem boas nem más, não achas que sejam as que ora participam do bem, ora do mal, ora de nenhum deles, como sentar-se, andar, correr, viajar, ou, ainda, como a pedra, a madeira e tudo o mais do mesmo gênero? Não é essa a tua maneira de pensar? Ou dizes que haja outras coisas que não são nem boas nem más?

Polo — Não; são essas mesmas.

Sócrates — Quando são feitas essas coisas indiferentes, o são em vista das boas, ou as boas é que o são em vista das indiferentes?

Polo — As indiferentes, sem dúvida, em vista das boas.

Sócrates — Assim, em vista do bom é que andamos, quando andamos, no pressuposto de que é melhor dessa maneira; e quando, pelo contrário, paramos, paramos para o mesmo fim, o bem. Ou não?

Polo — Isso mesmo.

Sócrates — E não matamos alguém, se é que matamos, ou banimos, ou lhe confiscamos os bens, na convicção de que é melhor para nós assim proceder, do que deixar de fazê-lo?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Então, quem faz todas essas coisas, só as faz tendo em vista o bem.

Polo — De acordo.



CAPÍTULO XXIV
Sócrates — E já não admitimos que quando fazemos alguma coisa em vista de um determinado fim, não é essa coisa que queremos, mas o que tínhamos em vista quando a fizemos?

Polo — Sem a menor dúvida.

Sócrates — Logo, não queremos degolar ninguém, ou expulsá-lo da cidade, nem despojá-lo de seus bens assim sem mais nem menos; quando isso nos pode ser de alguma utilidade, então queremos fazê-lo; porém se nos for prejudicial, não o queremos. Pois só queremos o bem, conforme afirmaste; o que não é nem bom nem mau não queremos; como também não queremos o que é mau. Não é isso? Não achas que estou certo, Polo? Sim ou não? Por que não respondes?

Polo — Estás certo.

Sócrates — Uma vez que estamos de acordo neste ponto, se alguém matar outra pessoa, ou a expulsar da cidade, ou lhe arrebatar os bens, quer seja tirano, quer seja orador, convencido de que disso auferirá vantagens, quando, realmente, só vem a ser prejudicado, este só faz, de fato, o que lhe apraz, não é verdade?

Pólo—Sim.

Sócrates — Porém fará, realmente, o que quer, se o que ele fizer lhe for nocivo? Por que não respondes?

Polo — Não me parece que faça o que quer.

Sócrates — De que modo, então, essa pessoa poderá ter grande poder na cidade, se, de acordo com tua concessão, ser poderoso é um bem?

Polo — Não seria possível.

Sócrates — Então eu disse a verdade, quando afirmei que um homem pode fazer na cidade o que bem entenda sem dispor de grande força nem fazer o que quer.

Polo — Como se tu também, Sócrates, não preferisses ter a liberdade de fazer na cidade o que bem te parecesse a não poder fazê-lo, e não tivesses inveja de quem vês matar alguém, ou privá-lo de seus bens, ou pô-lo a ferros.

Sócrates — De que jeito entendes isso: com justiça ou injustamente?

Polo — De qualquer forma que seja, em ambos os casos não é para invejar?

Sócrates — Não digas isso, Polo!

Polo — Como assim?

Sócrates — Porque não devemos invejar nem os que não são para invejar, nem os infelizes, porém compadecermos-nos deles.

Polo — Como! Achas que estão nesse caso as pessoas a que me referi?

Sócrates — Como não?

Polo — Então, és de opinião que o indivíduo que mata quem bem lhe apraz, se o faz com justiça é infeliz e digno de piedade?

Sócrates — Isso não; porém não me parece digno de inveja.

Polo — Não disseste agora mesmo que era infeliz?

Sócrates — Sim, meu caro; se matar alguém injustamente; mais, ainda: é digno de piedade. Quem o faz com justiça não é para invejar.

Polo — A ser assim, quem morre injustamente é que é infeliz e digno de piedade?

Sócrates — Menos do que quem o mata, Polo, e menos ainda do que o que morre justamente.

Polo — Como assim, Sócrates?

Sócrates — É que o maior dos males é cometer alguma injustiça.

Polo — Esse é o maior? Não é sofrer injustiça?

Sócrates — De forma alguma.

Polo — Então, preferirias sofrer alguma injustiça a praticá-la?

Sócrates — Por meu gosto, nem uma coisa nem outra; porém, se me visse obrigado a optar entre praticar alguma injustiça ou sofrê-la, preferiria sofrê-la, não praticá-la.

Polo — Então, não aceitarias ser tirano?

Sócrates — Não, se por tirano entendes o mesmo que eu.

Polo — O que entendo por isso é o que disse há pouco: o poder de fazer alguém o que quiser na cidade: matar, exilar e agir a seu bel-prazer.



CAPÍTULO XXV
Sócrates — Meu caro Polo, depois de eu falar, poderás refutar-me. Imaginemos que na hora em que o mercado está mais cheio de gente, com um punhal debaixo do braço eu te dissesse: Polo, neste momento adquiri um poder maravilhoso e me tornei tirano. Se eu achar que deve morrer imediatamente qualquer destes homens que vês aí, no mesmo instante ele morrerá; se for de parecer que é preciso partir a cabeça de qualquer deles, na mesma hora ficará com a cabeça quebrada; ou. rasgar-lhe as roupas, e estas serão rasgadas, tão grande é o meu poder na cidade. E se pusesses em dúvida minhas palavras e eu te mostrasse o punhal, decerto me observarias: Desse modo, Sócrates, não há quem não seja poderoso, pois com semelhante força conseguirias incendiar a casa de qualquer pessoa, os arsenais e as trirremes dos atenienses, e todos os navios, assim públicos como particulares. Porém dispor de um grande poder não é fazer cada um o que lhe apraz. Que te parece?

Polo — Desse jeito, não, evidentemente.

Sócrates — Poderás dizer-me sob que aspecto condenas semelhante poder?

Polo — Posso.

Sócrates — Qual é? Fala.

Polo — Porque forçosamente seria punido quem procedesse dessa maneira.

Sócrates — E ser punido não é um mal?

Polo — Sem dúvida.

Sócrates — Assim, varão admirável, volta a parecer-te que tem grande poder quem faz o que quer e disso aufere vantagens. Nisso consiste, quero crer, ser poderosos. Caso contrário, é um mal e deixa de ser poder. Consideremos também o seguinte: Não reconhecemos que às vezes é melhor fazer tudo aquilo que dissemos: matar os outros, bani-los, confiscar-lhes os bens, e às vezes não fazê-lo?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Pelo que se vê, nesse ponto estamos de acordo.

Polo — Sim.

Sócrates — Na tua opinião, quando é melhor proceder dessa maneira?

Polo — Prefiro, Sócrates, que tu mesmo respondas a essa pergunta.

Sócrates — Então, Polo, se te é mais agradável ouvir-me falar, direi que é melhor quando alguém procede com justiça, sendo um mal, quando se trata de um ato injusto.



CAPÍTULO XXVI
Polo — Difícil coisa é contestar-te; mas até uma criança não poderia refutar-te neste caso?

Sócrates — Ficarei gratíssimo a essa criança, como também a ti, se me refutardes e me desembaraçardes de minha tolice. Por isso, não tenhas como incômodo fazer bem a um amigo; refuta -me.

Polo — Então, Sócrates, não haverá necessidade de rebater com fatos antigos o que afirmas. Os acontecimentos de ontem e de anteontem serão suficientes para refutar-te e mostrar que são felizes muitas pessoas que cometem injustiça.

Sócrates — Que acontecimentos são esses?

Polo — Não vês Arquelau, filho de Perdicas, governar a Macedônia?

Sócrates — Pelo menos, tenho ouvido falar nele.

Polo — Como te parece que seja? Feliz ou infeliz?

Sócrates — Não posso sabê-lo, Polo. Nunca convivi com ele.

Polo — Como! Se tivesses convivido com ele, saberias; e por outras pessoas, daqui mesmo, não poderás saber se ele é feliz?

Sócrates — Não, por Zeus.

Polo — Pelo visto, Sócrates, vai dizer que não sabes nem mesmo se o Grande Rei é feliz.

Sócrates — E só diria a verdade, pois sou de todo ignorante no que respeita à sua educação e à justiça.

Polo — Como assim! A felicidade só consiste nisso?

Sócrates — É como digo, Polo; considero feliz quem é honesto e bom, quer seja homem, quer seja mulher; o desonesto e mau é infeliz.

Polo — Nesse caso, de acordo com o teu modo de pensar, Arquelau é infeliz?

Sócrates — Sim, amigo; se for injusto.

Polo — E como poderá deixar de ser injusto? Não tinha nenhum direito ao trono que ora ocupa, por haver nascido de uma escrava de Alcetas, irmão de Perdicas. Por lei, ele era também escravo de Alcetas, e se quisesse proceder honestamente, continuaria servindo Alcetas, e seria feliz, de acordo com tua doutrina. Ao invés disso, tornou-se infelicíssimo, por haver cometido as maiores injustiças. Para começar, mandou chamar o seu senhor e tio, sob o pretexto de restituir-lhe o trono que Perdicas lhe havia usurpado; depois de hospedá-lo e a seu filho Alexandre, de quem era primo e da mesma idade que ele, embriagou-os e, metendo-os numa carreta, removeu-os durante a noite, matou-os e fez desaparecer os seus corpos. Cometido esse crime, não se apercebeu de que se havia tornado o mais infeliz dos homens, nem teve remorsos. Pouco tempo depois, apoderou-se do seu próprio irmão, filho legítimo de Perdicas, menino de uns sete anos de idade, que por lei viria a herdar o trono, e em vez de permitir que se tornasse feliz e de educá-lo, como de justiça, para depois passar-lhe o poder, jogou-o num poço e o afogou, indo, após, contar a Cleópatra, sua mãe, que ele caíra no poço e se afogara, quando corria atrás de um ganso. Presentemente, longe de ser o mais feliz dos Macedônios, é o mais infeliz, havendo decerto muitos atenienses, a começar por ti, que prefeririam ser qualquer outro Macedônio a ser Arquelau.