VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR



domingo, setembro 30, 2007

BIBLIOTECA - ÍNDICE GERAL

Biblioteca Filosófica

Elogio à Loucura - Erasmo de Rotterdam

Górgias - Platão

O Príncipe - Maquiavel

Apologia de Sócrates - Platão

Crítica da Razão Pura - Immanuel Kant

segunda-feira, julho 24, 2006

Crítica da Razão Pura - Kant - Introdução - Parte I

CRÍTICA DA RAZÃO PURA – KANT



I – Da Distinção Entre o Conhecimento Puro e o Empírico

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência?

No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam por ela.

Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da experiência, alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico seja um composto daquilo que recebemos das impressões e daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente pelas impressões dos sentidos); aditamento que propriamente não distinguimos senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos.

Surge desse modo uma questão que não se pode resolver à primeira vista: será possível um conhecimento independente da experiência e das impressões dos sentidos?

Tais conhecimentos são denominados “a priori”, e distintos dos empíricos, cuja origem e "a posteriori”, isto é, da experiência.

Aquela expressão, no entanto, não abrange todo o significado da questão proposta, porquanto há conhecimentos que derivam indiretamente da experiência, isto é, de uma regra geral obtida pela experiência, e que no entanto não podem ser tachados de conhecimentos “a priori”.

Assim, se alguém escava os alicerces de uma casa, “a priori” poderá esperar que ela desabe, sem precisar observar a experiência da sua queda, pois, praticamente, já sabe que todo corpo abandonado no ar sem sustentação cai ao impulso da gravidade. Assim esse conhecimento é nitidamente empírico.

Consideraremos, portanto, conhecimento “a priori”, todo aquele que seja adquirido independentemente de qualquer experiência. A ele se opõem os opostos aos empíricos, isto é, àqueles que só o são “a posteriori”, quer dizer, por meio da experiência.

Entenderemos, pois, daqui por diante, por conhecimento “a priori”, todos aqueles que são absolutamente independentes da experiência; eles são opostos aos empíricos, isto é, aqueles que só são possíveis mediante a experiência.

Os conhecimentos “a priori” ainda podem dividir-se em puros e impuros. Denomina-se conhecimento “a priori” puro ao que carece completamente de qualquer empirismo.

Assim, p. ex., “toda mudança tem uma causa”, é um princípio “a priori”, mas impuro, porque o conceito de mudança só pode formar-se extraído da experiência.



II – Achamo-nos de Posse de Certos Conhecimentos “A Priori” e o Próprio Senso Comum não os Dispensa


Trata-se agora de descobrir o sinal pelo qual o conhecimento empírico se distingue do puro. A experiência nos mostra que uma coisa é desta ou daquela maneira, silenciando sobre a possibilidade de ser diferente.

Digamos, pois, primeiro: se encontramos uma proposição que tem que ser pensada com caráter de necessidade, tal proposição é um juízo “a priori".

Se, além disso, não é derivada e só se concebe como valendo por si mesma como necessária, será então absolutamente “a priori”.

Segundo: a experiência não fornece nunca juízos com uma universalidade verdadeira e rigorosa, mas apenas com uma generalidade suposta e relativa (por indução), o que, propriamente quer dizer que não se observou até agora uma exceção a determinadas leis. Um juízo, pois, pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, que não admite exceção alguma, não se deriva da experiência e sem valor absoluto “a priori”.

Portanto, a universalidade empírica nada mais é do que uma extensão arbitrária de validade, pois se passa de uma validade que corresponde à maior parte dos casos, ao que corresponde a todos eles, como p. ex. nesta proposição: “Todos os corpos são pesados.”

Pelo contrário, quando uma rigorosa universalidade é essencial em um juízo, esta universalidade indica uma fonte especial de conhecimento, quer dizer, uma faculdade de conhecer “a priori”. A necessidade e a precisa universalidade são os caracteres evidentes de um conhecimento “a priori”, e estão indissoluvelmente unidos. Mas como na prática é mais fácil mostrar a limitação empírica de um conhecimento do que a contingência nos juízos, e como também é mais evidente a universalidade ilimitada do que a necessidade absoluta, convém servir-se separadamente desses dois critérios, pois cada um é por si mesmo infalivel.

Ora, é fácil demonstrar que no conhecimento humano existem realmente juízos de um valor necessário, e na mais rigorosa significação universal; por conseguinte, juízos puros, “a priori”. Se se quer um exemplo da própria ciência, basta reparar em todas as proposições da Matemática. Se se quer outro tomado do bom senso, pode bastar a proposição de que cada mudança tem uma causa.

Neste último exemplo, o conceito de causa contém de tal modo o de necessidade de enlace com um efeito e a rigorosa generalidade da lei, que desapareceria por completo se, como o fez Hume, quiséssemos derivá-lo da freqüente associação do que segue com o que precede e do hábito (e por isso de uma necessidade simplesmente subjetiva) de ligar certas representações.

Também se poderia, sem recorrer a esses exemplos, para provar a existência de princípios “a priori” em nosso conhecimento, demonstrar que são indispensáveis para a possibilidade da mesma experiência, sendo portanto uma demonstração “a priori".

Porque, onde basearia a experiência a sua certeza se todas as regras que empregasse fossem sempre empíricas e contingentes?

Assim, os que possuem esse caráter dificilmente são aceitos como primeiros princípios.

Basta-nos haver manifestado aqui o uso puro de nossa faculdade de conhecer de um modo efetivo e os caracteres que lhe são próprios.

Não é só nos juízos, pois também nos conceitos encontramos uma origem “apriorística” de alguns.

Realmente, subtrai do vosso conceito empírico de um corpo tudo quanto possui de empírico: a cor, a dureza, a moleza, o peso, e a própria impenetrabilidade, e ficará o espaço que (ora vazio) ele ocupava e que não pode ser suprimido.

Quando separais de alguns conceitos empíricos de um objeto, corpóreo ou não, todas as propriedades que a experiência ministra, não podeis no entanto privá-lo daquela, mediante a qual é pensada como substância, ou aderente a uma substância (se bem que esse conceito de substância contenha mais determinações que o de um objeto em geral).

Deveis, pois, reconhecer que a necessidade com que este conceito se impõe dá-se em virtude da sua existência, “a priori” na vossa faculdade de conhecer.



III – A Filosofia Necessita de Uma Ciência que Determine a Possibilidade, os Princípios e a Extensão de Todos os Conhecimentos “A Priori”


Há uma coisa ainda mais importante que o que precede: certos conhecimentos por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não podem ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parece que estendem o círculo de nossos juízos além dos seus limites.

Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as investigações de nossa razão, investigações que por sua importância nos parecem superiores, e por seu fim muito mais sublimes a tudo quanto a experiência pode apreender no mundo dos fenômenos; investigações tão importantes que, abandoná-las por incapacidade, revela pouco apreço ou indiferença, razão pela qual tudo intentamos para as fazer, ainda que incidindo em erro.

Esses inevitáveis temas da razão pura são: Deus, liberdade e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à resolução dessas questões denomina-se Metafísica. Sua marcha, é, no princípio, dogmática; quer dizer, ela enceta confiadamente o seu trabalho sem ter provas na potência ou impotência de nossa razão para tão grande empresa.

Parecia, no entanto, natural que, ao abandonar o terreno da experiência, não construíssem imediatamente um edificio com conhecimentos adquiridos sem saber como, ou sobre o crédito de princípios cuja origem ignoramos. E sem haver assegurado, antes de tudo, mediante cuidadosas investigações, acerca da solidez do seu fundamento. Pelo menos, antes de o construir, deveriam ter apresentado estas questões: Como pode a inteligência chegar aos conhecimentos “a priori”? Que extensão, legitimidade e valor podem ter?

Com efeito, nada seria mais natural, se esta palavra significa o que conveniente e racionalmente deve suceder; mas se por ela entendemos o que de ordinário se faz, nada é mais natural que dar ao olvido essas questões, pois desfrutando de certeza uma parte de nossos conhecimentos, a Matemática, concebe-se a fagueira esperança de que os demais cheguem ao mesmo ponto.

Por outra parte, abandonando o círculo da experiência, podem estar seguros de não ser contraditados por ela. O desejo de estender os nossos conhecimentos é tão grande que só detém seus passos quando tropeça em uma contradição claríssima; mas as ficções do pensamento, se estão arrumadas com certo cuidado, podem evitar tais tropeços, ainda que nunca deixem de ser ficções.

As matemáticas fornecem um brilhante exemplo do que poderíamos fazer independentemente da experiência, nos conhecimentos “a priori”. É verdade que não se ocupam senão de objetos e conhecimentos que podem ser representados pela intuição; mas esta circunstância facilmente se pode reparar, porque a intuição de que se trata pode dar-se “a priori” por si mesma, e por conseguinte, é apenas distinguível de um simples conceito puro.

A propensão a estender os conhecimentos, imbuida com esta prova do poder da razão, não vê limites para o seu desenvolvimento. A pomba ligeira agitando o ar com seu livre vôo, cuja resistência nota, poderia imaginar que o seu vôo seria mais fácil no vácuo.

Assim, Platão, abandonando o mundo sensível que encerra a inteligência em limites tão estreitos, lançou-se nas asas das idéias pelo espaço vazio do entendimento puro, sem advertir que com os seus esforços nada adiantava, faltando-lhe ponto de apoio onde manter-se e segurar-se para aplicar forças na esfera própria da inteligência.

Mas tal é geralmente a marcha da razão humana na especulação; termina o mais breve possível a sua obra, e não procura, até muito tempo depois, indagar o fundamento em que repousa.

Uma vez chegado a esse ponto, encontra toda sorte de pretextos para consolar-se dessa falta de solidez, ou, em último termo, repele voluntariamente a perigosa e tardia prova. Mas o que nos livra de todo cuidado e receio durante a construção de nossa obra, e ainda nos engana por sua aparente solidez, é que uma grande parte, quiçá a maior, do trabalho de nossa razão, consiste na análise de conceitos que já temos formados sobre os objetos.

Isso nos dá uma infinidade de conhecimentos que, se bem sejam apenas esclarecimentos e explicações daquilo que foi pensado em nossos conceitos (ainda que de maneira confusa), estimam-se, todavia, como novas luzes (Einsicheter), pelo menos, quanto à sua forma, por mais que não aumentem a matéria nem o conteúdo de nossos conceitos, pois simplesmente os preparam e ordenam.

Como esse procedimento dá um conhecimento real “a priori” que segue uma marcha segura e útil, enganada e iludida a razão, sem o notar, entra em afirmações de uma natureza completamente distinta e totalmente estranha ao conceito dado “a priori” e sem que saiba como as conseguiu, nem se lhe ocorra fazer-se semelhante pergunta.

Por isso, pois, tratarei desde o começo da diferença que existe entre essas duas espécies de conhecimentos.



IV – Diferença Entre o Juízo Analítico e o Sintético


Em todos os juízos em que se concebe a relação de um sujeito com um predicado (considerando só os juízos afirmativos, pois nos negativos é mais fácil fazer, depois, a aplicação), esta relação é possível de dois modos: ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo nele contido (de um modo tácito), ou B é completamente estranho ao conceito A, se bem se ache enlaçado com ele.

No primeiro caso chamo ao juízo analítico, no segundo, sintético. Os juízos analíticos (afirmativos) são, pois, aqueles em que o enlace do sujeito com o predicado se concebe por identidade; aqueles, ao contrário, cujo enlace é sem identidade, devem chamar-se juízos sintéticos. Poder-se-ia também denominar os primeiros de juízos explicativos, e aos segundos, de juízos extensivos, pelo motivo de que aqueles nada aditam ao sujeito pelo atributo, apenas decompondo o sujeito em conceitos parciais compreendidos e concebidos (ainda que tacitamente) no mesmo, enquanto que, pelo contrário, os últimos acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que não era de modo algum pensado naquele e que não se obteria por nenhuma decomposição.

Quando digo p. ex.: “todos os corpos são extensos”, formulo um juízo analítico, porque não tenho que sair do conceito de corpo para achar unida a ele a extensão, e só tenho que decompô-lo, quer dizer, só necessito tornar-me cônscio da diversidade que pensamos sempre em dito conceito para encontrar o predicado; é portanto um juízo analítico. Pelo contrário, quando digo: “todos os corpos são pesados”, já o predicado é algo completamente distinto do que em geral penso no simples conceito de corpo. A adição de tal atributo dá, pois, um juízo sintético.

Os juízos da experiência, como tais, são todos sintéticos.

Porque seria absurdo fundar um juízo analítico na experiência, pois para formá-lo não preciso sair do meu conceito e por conseguinte não me é necessário o testemunho da experiência. P. ex.: “um corpo é extenso” é uma proposição “a priori” e não um juízo da experiência porque antes de dirigir-me à experiência, tenho já em meu conceito todas as condições do juízo; só me resta, segundo o princípio de contradição, tirar o predicado do sujeito e ao mesmo tempo chegar a ter consciência da necessidade do juízo, necessidade que jamais a experiência poderá subministrar-me.

Pelo contrário, embora eu não tire do conceito de corpo em geral o predicado pesado, indica, sem embargo, aquele conceito um objetivo da experiência, uma parte da experiência total, à qual posso ainda aditar outra parte da mesma como pertencente a ela.

Posso reconhecer antes, analiticamente, o conceito de corpo pelas propriedades da extensão, impenetrabilidade, forma etc., etc., as quais são todas pensadas neste conceito. Mas se amplio meu conhecimento e observo a experiência que me proporcionou o conceito de corpo, encontro enlaçada constantemente com todas as anteriores propriedades e de gravidade (o peso), que adito sinteticamente, como predicado, àquele conceito.


RETORNAR AO ÍNDICE DE CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Crítica da Razão Pura - Kant - Introdução - Parte II

CRÍTICA DA RAZÃO PURA – IMMANUEL KANT


INTRODUÇÃO - PARTE II


V – Os Juízos Matemáticos São Todos Sintéticos


Esta proposição parece ter escapado até hoje às indagações dos que analisam a razão humana, e quase estão opostas às suas conjeturas, apesar da sua incontrovertível certeza e da suma importância de suas conseqüências.

Como se observa que os raciocínios dos matemáticos procediam todos dos princípios de contradição (exigido pela natureza de toda certeza apodítica), acreditava-se também que os princípios tinham sido reconhecidos em virtude do mesmo processo: no que se enganaram, porque se indubitavelmente uma proposição sintética pode ser conhecida segundo o princípio de contradição, isto não é possível dentro de si mesma, senão supondo outra proposição sintética de que possa ser deduzida.

Deve notar-se, antes de tudo, que as proposições propriamente matemáticas são sempre juízos “a priori” e não juízos empíricos, porque implicam necessidade, que não se pode obter pela experiência.

Mas, se não se quer conceder isto, limito minha proposição às matemáticas puras, cujo conceito traz consigo o não conter conhecimentos empíricos, mas tão-somente “a priori”.

I – Poder-se-ia em verdade crer, à primeira vista, que a proposição 7 + 5 = 12 é puramente analítica, resultante, segundo o princípio de contradição, do conceito de uma soma de sete e cinco. Mas se a considerarmos com mais atenção, acharemos que o conceito de soma de sete e cinco não contém mais do que a união dos dois números em um só, o que não faz pensar qual seja esse número único que compreenda aos outros dois. O conceito de 12 não é de modo algum percebido só pelo pensamento da união de cinco e sete, e posso decompor todo meu conceito dessa soma tanto quanto quiser, sem que por isso encontre o número 12.

É preciso, pois, ultrapassar esse conceito recorrendo-se à intuição correspondente a um dos dois números, quiçá aos 5 dedos da mão ou a cinco pontos (como faz Segner em sua Aritmética), e aditar sucessivamente ao conceito sete as cinco unidades dadas na intuição.

Com efeito, tomo primeiramente o número sete, e auxiliando-me de meus dedos como intuição para o conceito de 5, acrescento sucessivamente ao número 7 as unidades que tive de reunir para formar o 5, e assim vejo surgir o número 12.

Pela adição de sete e cinco tenho idéia desta soma 7 + 5, é verdade; mas não que esta seja igual ao número 12. A proposição aritmética é, pois, sempre sintética: o que se compreende ainda mais claramente se se tomam números maiores, pois então é evidente que, por mais que volvamos e coloquemos nosso conceito quanto quisermos, nunca poderemos achar a soma mediante a simples decomposição de nossos conceitos e sem o auxilio da intuição.

Tampouco é analítico um princípio qualquer de Geometria pura.

É uma proposição sintética que a linha reta, entre dois pontos é a mais curta, porque meu conceito de reta não contém nada que seja quantidade, senão só qualidade.

O conceito de mais curta é completamente aditado e não pode provir de modo algum da decomposição do conceito de linha reta. É preciso, pois, recorrer-se aqui à intuição, único modo para que seja possível a síntese.

Algumas poucas proposições fundamentais, que os geômetras pressupõem, são realmente analíticas e se apóiam no princípio de contradição; mas também é verdade que só servem, como proposições idênticas, ao encadeamento do método e não como princípios, tais como, p. ex., a = a, o todo é igual a si mesmo: ou (a + b) < “a”, o todo é maior do que a parte. E, sem embargo, estes mesmos axiomas ainda que valham como simples conceitos, são admitidos nas matemáticas somente porque podem ser representados em intuição. A ambigüidade de expressão é que geralmente nos faz crer que o predicado de tais juízos apodíticos existe já em nossos conceitos, e que, conseguintemente, é analítico o juízo. A um conceito dado temos que aditar certo predicado, e esta necessidade pertence já aos conceitos. Mas a questão não é o que devemos aditar com o pensamento a um conceito dado, senão o que realmente pensamos nele, ainda que de um modo obscuro. Vemos, pois, que o predicado se une necessariamente ao conceito, não como concebido nele, senão mediante uma intuição que a ele deve unir-se. II – A ciência da natureza (Física) contém como princípios, juízos sintéticos “a priori”. Só tomarei como exemplos estas duas proposições: em todas as mudanças do mundo corpóreo a quanfidade de matéria permanece sempre a mesma, ou, em todas as comunicações de movimento a ação e reação devem ser sempre iguais. Em ambos vemos, não só a necessidade e, por conseguinte, sua origem “a priori”, senão que são proposições sintéticas. Porque no conceito de matéria não penso em sua permanência, mas unicamente em sua presença no espaço que ocupa, e, portanto, vou além do conceito de matéria para atribuir-lhe algo “a priori” que não havia concebido nele. A proposição não é, pois, concebida analítica, senão sinteticamente ainda que “a priori”, e assim sucede com as restantes proposições da parte pura da Física. III – Também devem haver conhecimentos sintéticos “a priori” na Metafísica, ainda que só a consideraremos como uma ciência em ensaio; mas que, não obstante, torna indispensável a natureza da razão humana. A Metafísica não se ocupa unicamente em analisar os conceitos das coisas que nós formamos "a priori”, e, por conseguinte, em explicações analíticas, senão que por ela queremos estender nossos conhecimentos “a priori”, e para o efeito nos valemos de princípios que aos conceitos dados aditam algo que não estava compreendido neles, e mediante os juízos sintéticos “a priori” nos afastamos tanto, que a experiência não pode seguir-nos, p. ex., na proposição: o mundo deve ter um primeiro princípio etc., etc. Assim, pois, a Metafísica consiste, pelo menos segundo seu fim, em proposições puramente sintéticas “a priori”. VI – Problema Geral da Razão Pura Muito se adiantou com haver podido trazer à forma de um só problema uma infinidade de questões: Com isso, não só se facilita o próprio trabalho determinando-o com precisão, como também se facilita o exame para outro que queira verificar se cumprimos ou não o nosso desígnio. O verdadeiro problema da razão pura contém-se nesta pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos “a priori"? Se a Metafísica permaneceu até agora em um estado vago de incerteza e contradição, deve atribuir-se unicamente a que esse problema assim como também a diferença entre o juízo analítico e o sintético, não se tinham apresentado antes ao pensamento. A vida ou morte da Metafísica depende da solução desse problema, ou da demonstração de que é impossível resolvê-lo. David Hume é, de todos os filósofos, o que mais se aproximou desse problema, mas esteve longe de o determinar suficientemente e não o pensou em toda a sua originalidade; detendo-se só ante o princípio sintético da relação de causa e efeito (“principium causalitatis”), acreditou poder deduzir que o tal princípio é absolutamente impossível “a priori”, e, segundo as suas conclusões, tudo o que denominamos Metafísica descansaria sobre uma simples opinião de um pretendido conhecimento racional, que no fato nasce simplesmente da experiência e que recebe, do hábito, certo aspecto de necessidade. Esta afirmação, destruidora de toda a Filosofia pura, não seria nunca emitida, caso o seu autor houvesse abordado em toda a sua generalidade esse problema, porque então teria compreendido que, segundo o seu argumento, tampouco poderiam existir as matemáticas puras, pois elas contêm certamente princípios sintéticos “a priori”, e seu bom senso teria retrocedido ante semelhante asserto. Na resolução do precedente problema está também compreendida ao mesmo tempo a possibilidade do emprego da razão pura na fundação e construção de todas as ciências que contêm um conhecimento teórico “a priori” dos objetos, quer dizer, está contida a resposta destas perguntas: Como é possível uma Matemática pura? Como é possível uma Física pura? Não se pode perguntar destas ciências, mais do que como são possíveis porque, ao existirem como reais, demonstram pois que o são. No tocante à Metafísica, como seus passos têm sido até hoje tão desditosos, tão distantes do fim essencial da mesma, que pode dizer-se que todos têm sido em vão, perfeitamente explica-se a dúvida de sua possibilidade e de sua existência. Mas, todavia, esta espécie de conhecimento deve, em certo sentido, considerar-se como dado; e a Metafísica é real, senão como ciência feita, pelo menos em sua disposição natural (Metaphisica naturalis), porque a razão humana, sem que esteja movida por uma vaidade de uma onisciência; senão simplesmente estimulada por uma necessidade própria, marcha sem descanso algum para questões que não podem ser resolvidas pelo uso empírico da razão, nem por princípios que dela emanem. Isso sucede realmente a todos os homens, logo que a sua razão começa a especular; por isso a Metafísica existiu sempre e existirá onde esteja o homem. De tal modo a nossa questão é agora: como é possível a Metafísica como disposição natural? Quer dizer: como nascem da natureza da razão humana universal essas questões, que a razão pura formula e que por necessidade própria se sente impulsionada a resolver? Mas como todos os ensaios feitos até hoje para resolver essas questões naturais (por exemplo: a de saber se o mundo teve princípio, ou se é eterno etc.) têm encontrado contradições inevitáveis, não podemos contentar-nos com a simples disposição natural para a Metafísica, quer dizer, com a faculdade da razão pura, de que procede uma Metafísica, qualquer que seja; senão que deve ser possível chegar com ela a uma certeza ou ignorância dos objetos e poder afirmar algo sobre os objetos dessas questões ou sobre a potência da razão, e, por conseguinte, a estender com confiança seu poder ou colocá-la em limites seguros e determinados. Esta última questão, que resulta do problema geral que precede, se expressa nos seguintes termos: de que modo é possível a Metafísica como ciência? A crítica da razão conduz, por fim, necessariamente, à ciência; o uso dogmático da razão sem crítica conduz, pelo contrário, a afirmações infundadas, que sempre podem ser contraditadas por outras não menos verossímeis, o que conduz ao ceticismo. Nem tampouco pode essa ciência ter uma extensão excessiva, porque não se ocupa dos objetos da razão, cuja diversidade é infinita, mas simplesmente da razão mesma, de problemas que nascem exclusivamente do seu seio e que se lhe apresentam, não pela natureza das coisas que diferem dela, senão pela sua própria. Mas uma vez que conheça perfeitamente a sua própria faculdade em relação com os objetos que pode fornecer-lhe a experiência, ser-lhe-á fácil determinar com toda segurança a exatidão a extensão e limites de seu exercício, intentado fora dos limites da experiência. Pode-se e deve-se, portanto, considerar como ineficaz todo ensaio feito até aqui para construir uma metafísica dogmática, porque o que neles existe de analítico, a saber: a simples decomposição dos conceitos que “a priori” se encontram em nossa razão, não é seu fim total, senão somente um meio preliminar da Metafísica, cujo objeto é estender nossos conhecimentos científicos “a priori". A análise é incapaz de realizar isto, pois se reduz a mostrar o que se acha contido em ditos conceitos, e não diz como foi adquirido “a priori”, para poder depois determinar o seu legítimo emprego nos objetos de todos os nossos conhecimentos em geral. Não se necessita grande abnegação para renunciar a todas essas pretensões, posto que as evidentes e inevitáveis contradições da razão consigo mesma no processo dogmático, causaram por largo tempo o descrédito da Metafísica. Por isso será mister muita firmeza para que a dificuldade intrínseca e a oposição externa não nos afastem de uma ciência tão indispensável à razão humana, cuja raiz não poderia estragar-se ainda que se cortassem todos os seus ramos exteriores, e que, mediante um método diferente e oposto ao que até hoje tem sido empregado, pode adquirir um útil e fecundo desenvolvimento. VII – Idéia e Divisão de Uma Ciência Particular sob o Nome de CRÍTICA DA RAZÃO PURA. De tudo o que precede resulta, pois, a idéia de uma ciência particular que pode chamar-se “crítica da razão pura”, por ser a razão a faculdade que proporciona os princípios do conhecimento “a priori”. Razão pura é, por isso, a que contém os princípios para conhecer algo absolutamente “a priori”. Um orgânon da razão pura seria o conjunto de princípios mediante os quais todos os conhecimentos “a priori” poderiam ser adquiridos e realmente estabelecidos. A aplicação extensa de tal orgânon produzida um sistema da razão pura. Mas como isto seria exigir demasiado e como fica ainda por saber se a extensão de nossos conhecimentos é possível, e em que casos, podemos considerar a ciência do simples juízo da razão pura, de suas partes e limites, como a propedêutica para o sistema de razão pura. Uma tal ciência não deveria denominar-se doutrina, mas somente “crítica da razão pura": sua utilidade, desde o ponto de vista especulativo, seria puramente negativa e não servida para ampliar nossa razão, senão para a emancipar de todo erro, o que já não é pouco. Chamo transcendental todo conhecimento que em geral se ocupe, não dos objetos, mas da maneira que temos de conhecê-los, tanto quanto possível “a priori”. Um sistema de tais conceitos se denominada “Filosofia transcendental”. Mas esta filosofia é demasiada para começar, porque deve conter todo o conhecimento, tanto o analítico como o sintético “a priori”, e se estenderia muito além do que corresponde ao nosso plano. Devemos tratar somente da análise quanto seja indispensável e necessária para perceber em toda a sua extensão os princípios da síntese a priori. Síntese que constitui o nosso único objeto (assunto). Esta investigação, que não podemos chamar propriamente doutrina, mas tão-só “crítica transcendental”, pois tem por fim não o aumento dos nossos conhecimentos, mas a retificação dos mesmos, vem a ser como a pedra de toque para estimar o valor ou a insignificância de todos os conhecimentos “a priori”, que é do que nos ocupamos atualmente. A crítica é, portanto, no possível, uma preparação para um orgânon, e se este não se distingue, será pelo menos um cânon, segundo o qual possa em todo caso ser exposto analítica e sinteticamente o sistema completo da filosofia da razão pura, que deve consistir na extensão ou na simples limitação do conhecimento racional. Se se atende a que dito sistema tem por objeto, não a natureza das coisas, que é infinita, mas o entendimento que julga sobre a natureza das coisas, e ainda esse entendimento considerado somente em relação aos seus conhecimentos “a priori” , podemos presumir que o sistema não é impossível, nem tão vasto, que se não possa esperar o seu termo. Como não necessitamos procurar esse objeto exteriormente nem pode permanecer oculto para nós, não parece que tenha de ser tão extenso que não possamos abarcá-lo em seu justo preço. Menos ainda deve esperar-se que esta obra seja uma crítica dos livros publicados sobre sistemas da razão pura; aqui só se trata de uma crítica da faculdade da razão pura. Somente tomando essa crítica como base, se consegue uma segura pedra de toque para apreciar o valor das obras filosóficas antigas e modernas; sem ela, o historiador e o juiz condenam incompetentemente as asserções de outros, tendo-as como infundadas em nome das próprias, que não têm melhor fundamento. A filosofia transcendental é a idéia de uma ciência, cujo plano deve traçar a crítica da razão pura de uma maneira arquitetônica, quer dizer, por princípios e com a mais plena segurança da perfeição e validez de todos os princípios da razão pura. Se a crítica não toma o nome de Filosofia transcendental é só porque deveria, para ser um sistema completo, conter uma análise detalhada de todos os conhecimentos humanos “a priori”. A crítica deve, sem dúvida alguma, colocar ante nossos olhos uma perfeita enumeração de todos os conceitos fundamentais que constituem o conhecimento puro; mas se abstém da detalhada análise deles, em parte, porque essa decomposição não seria conforme com seu fim, e, ademais, não apre¬senta tanta dificuldade como a síntese, que é objeto da crítica e, em parte, também, porque seria contrário à unidade do plano entreter-se numa análise e derivação tão acabados, podendo eximir-se de tal empenho. Demais, assim a análise perfeita dos conceitos “a priori”, como a dedução dos que depois hão de ser derivados, é coisa fácil de suprir sempre que antes tenham sido expostos detalhadamente como princípios da síntese e nada lhes falta em relação a esse fim essencial. Segundo isto, tudo o que constitui a Filosofia transcendental pertence à crítica da razão pura, que é a idéia completa da Filosofia transcendental; mas não esta ciência mesma, porque na análise só se estende até o que lhe é indispensável para o perfeito juízo do conhecimento sintético “a priori”. O principal propósito que deve guiar-nos na divisão desta ciência é não introduzir conceitos que contenham algo de empírico, quer dizer, que o conhecimento “a priori” seja completamente puro. Daqui, que, ainda que os princípios superiores de Moral e seus conceitos fundamentais sejam conhecimentos “a priori”, não pertençam sem embargo à Filosofia transcendental; porque os conceitos de prazer ou dor, de desejo ou inclinação têm todos uma origem empírica, e ainda que seja certo que não fundamentam os preceitos morais, devem, sem embargo, formar parte da moralidade pura, juntamente com o conceito do dever de dominar os obstáculos ou dos impulsos a que não devemos entregar-nos. Donde se segue que a Filosofia transcendental é a filosofia da razão pura simplesmente especulativa, porque todo o concernente à prática, que contém móveis, refere-se aos sentimentos que pertencem às fontes empíricas do conhecimento. Se se quer fazer a divisão dessa ciência desde o ponto de vista geral de um sistema, deve ela compreender: 1.º – uma teoria elementar da razão pura; 2.° – uma teoria do método da razão pura. Cada uma destas partes principais terá suas sub-divisões cujos fundamentos não poderão ser facilmente expostos aqui. O que parece necessário recordar na introdução é que o conhecimento humano tem duas origens e que talvez ambas procedam de uma comum raiz desconhecida para nós; estas são: a sensibilidade e o entendimento; pela primeira os objetos nos são dados, e pelo segundo, concebidos. A sensibilidade pertence à Filosofia transcendental enquanto contém representações “a priori”, que por seu turno encerram as condições mediante as quais nos são dados os objetos. A teoria transcendental da sensibilidade deve pertencer à primeira parte da ciência elementar, pois as condições sob as quais se dão os objetos ao conhecimento humano precedem àquelas sob as quais são concebidos esses mesmos objetos.


RETORNAR AO ÍNDICE DE CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Crítica da Razão Pura - Kant - Parte Primeira - 01 ao 06

CRÍTICA DA RAZÃO PURA - KANT

PARTE PRIMEIRA
DA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDENTAL


Estética Transcendental

1. Qualquer que seja o modo de como um conhecimento possa relacionar-se com os objetos, aquele em que essa relação é imediata e que serve de meio a todo pensamento, chama-se intuição (Ansechauung). (1) Mas esta intuição não tem lugar senão sob a condição de nos ser dado o objeto, e isto só é possível, para o homem, modificando o nosso espírito de certa maneira.

A capacidade de receber (a receptividade) representações dos objetos segundo a maneira como eles nos afetam, denomina-se sensibilidade. Os objetos nos são dados mediante a sensibilidade e somente ela é que nos fornece intuições; mas é pelo entendimento que elas são pensadas, sendo dele que surgem os conceitos. Todo pensamento deve em última análise, seja direta ou indiretamente, mediante certos caracteres, referir-se às intuições, e, conseguintemente, à sensibilidade, porque de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado.

A impressão de um objeto sobre esta capacidade de representações, enquanto somos por ele afetados, é a sensação. Chama-se empírica toda intuição que relaciona ao objeto, por meio da sensação. O objeto indeterminado de uma intuição empírica, denomina-se fenômeno. No fenômeno chamo matéria àquilo que corresponde à sensação; aquilo pelo qual o que ele tem de diverso pode ser ordenado em determinadas relações, denomino “forma do fenômeno”. Como aquilo mediante o qual as sensações se ordenam e são suscetíveis de adquirir certa forma não pode ser a sensação, infere-se que a matéria dos fenômenos só nos pode ser fornecida “a posteriori”, e que a forma dos mesmos deve achar-se já preparada “a priori” no espírito para todos em geral, e que por conseguinte pode ser considerada independentemente da sensação.

Toda a representação na qual não há traço daquilo que pertence à sensação chamo pura (em sentido transcendental). A forma pura das intuições sensíveis em geral, na qual todo o diverso dos fenômenos é percebido pela intuição sob certas relações, encontra-se “a priori” no espírito. Esta forma pura da sensibilidade pode ainda ser designada sob o nome de intuição pura. Assim, quando na representação de um corpo eu me abstraio daquilo que a inteligência pensa, como substância, força, divisibilidade etc., bem como daquilo que pertence à sensação, como a impenetrabilidade, a dureza, a cor etc., ainda me resta alguma coisa desta intuição empírica, a saber: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição pura, que tem lugar “a priori” no espírito, como uma forma pura da sensibilidade e sem um objeto real do sentido ou sensação.

Denomino Estética transcendental (2) à ciência de todos os princípios “a priori” da sensibilidade. É pois esta ciência que deve constituir a primeira parte da teoria transcendental dos elementos, por oposição àquela que contém os princípios do pensamento puro e que se denominará Lógica transcendental.

Na Estética transcendental, nós começaremos por isolar a sensibilidade, fazendo abstração de tudo quanto o entendimento aí acrescenta e pensa por seus conceitos, de tal sorte que só fique a intuição empírica. Em segundo lugar, separaremos, também, da intuição tudo o que pertence à sensação, com o fim de ficarmos só com a intuição pura e com a forma do fenômeno, que é a única coisa que a sensibilidade nos pode dar “a priori”. Resultará desta pesquisa que existem duas formas puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento “a priori”, a saber: o espaço e o tempo, de cujo exame vamos agora ocupar-nos.


Primeira Seção

Da Estética Transcendental do Espaço
2 - Exposição metafísica deste conceito

Por meio dessa propriedade de nosso espírito que é o sentido externo, nós nos representamos os objetos como estando fora de nós e colocados todos no espaço. É lá que sua figura, sua grandeza e suas relações recíprocas são determinadas ou determináveis. O sentido interno, por meio do qual o espírito se percebe a si mesmo intuitivamente, ou percebe o seu estado interior, não nos dá, sem dúvida, nenhuma intuição da alma, ela mesma como objeto; mas há todavia uma forma determinada pela qual é possível a intuição do seu estado interno, e segundo a qual tudo que pertence às suas determinações internas é representado segundo relações de tempo. O tempo não pode ser percebido exteriormente, assim como o espaço não pode ser considerado como algo interior em nós outros. Que são, pois, tempo e espaço? São entidades reais ou são somente determinações ou mesmo simples relações das coisas? E essas relações seriam de tal natureza que eles não cessariam de subsistir entre as coisas, mesmo quando não fossem percebidos como objetos de intuição?

Ou são tais que só pertencem à forma da intuição, e, por conseguinte, à qualidade subjetiva de nosso espírito, sem a qual esses predicados jamais poderiam ser atribuidos a coisa alguma?

Para obter uma resposta exporemos primeiramente o conceito de espaço. Entendo por exposição a clara representação (ainda que não seja extensa) do que pertence a um conceito; a exposição é metafísica quando contém o que o conceito apresenta como dado “a priori”.

1.° – O espaço não é um conceito empírico, derivado de experiências exteriores. Com efeito, para que eu possa referir certas sensações a qualquer coisa de exterior a mim (quer dizer, a qualquer coisa colocada em outro lugar do espaço diverso do que ocupo), e, para que possa representar as coisas como de fora e ao lado umas das outras, e por conseguinte como não sendo somente diferentes, mas colocadas em lugares diferentes, deve existir já em princípio a representação do espaço. Esta representação não pode, pois, nascer por experiência das relações dos fenômenos exteriores, sendo que estas só são possíveis mediante a sua prévia existência.

2.° – O espaço é uma representação necessária, “a priori”, que serve de fundamento a todas as intuições externas. É impossível conceber que não exista espaço, ainda que se possa pensar que nele não exista nenhum objeto. Ele é considerado como a condição da possibilidade dos fenômenos, e não como uma representação deles dependente; e é uma representação “a priori”, que é o fundamento dos fenômenos externos.

3.° – O espaço não é um conceito discursivo, ou, como se diz, universal das relações das coisas em geral, mas uma instituição pura. Com efeito, não se pode representar mais que um só espaço, e quando se fala de muitos, entende-se somente que se refere às partes do mesmo espaço único e universal. Estas partes só se concebem no espaço uno e onicompreensivo, sem que pudessem precedê-lo como se fossem seus elementos (cuja composição fora possível em um todo). O espaço é essencialmente uno; a variedade que nele achamos, e, conseqüentemente, o conceito universal de espaço em geral, fundam-se unicamente em limitações. Daqui se segue que o que serve de base a todos os conceitos que temos do espaço, é uma intuição “a priori” (que não é empírica). O mesmo acontece cóm os princípios geométricos, como quando dizemos, por exemplo, que a soma de dois lados de um triángulo é maior do que o terceiro, cuja certeza apodítica não procede dos conceitos gerais de linha e triângulo, mas de uma intuição “a priori”.

4.° – O espaço é representado como uma grandeza infinita dada. É necessário considerar todo conceito como uma representação contida em uma multidão infinita de representações distintas (das quais é expressão comum); mas nenhum conceito como tal contém em si uma multidão infinita de representações. Sem embargo, assim concebemos o espaço (pois todas as suas partes coexistem no infinito). A primitiva representação do espaço é, pois, uma intuição “a priori” e não um conceito.


3 - Exposição Transcendental do Conceito de Espaço


Entendo por exposição transcendental a aplicação de um conceito, como princípio que pode mostrar a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos “a priori”. Ora, isso supôe duas coisas:

1 – que realmente emanem do conceito dado tais conhecimentos;

2 – que esses conhecimentos não sejam possíveis senão sob a suposição de um modo de explicação dado e tirado desse conceito.

A Geometria é uma ciência que determina sinteticamente, e, portanto, “a priori”, as propriedades do espaço. Que deve ser, pois, a representação do espaço, para que tal conhecimento seja possível? Deve ser, primeiramente, uma intuição; porque é impossível tirar de um simples conceito proposições que o ultrapassem, como se verifica em Geometria (Int. V).

Mas essa intuição deve achar-se em nós, “a priori”, quer dizer, anteriormente a toda percepção de um objeto, e, por conseguinte, ser pura e não empírica.

Efetivamente, as proposições geométricas, como esta por exemplo: o espaço não tem mais que três dimensões, são todas apodíticas, quer dizer que elas implicam a consciência de sua necessidade; mas tais proposições não podem ser julgamentos empíricos ou de experiência, nem deles derivar (Introdução, II).

Como se encontra, pois, no espírito, uma intuição externa anterior aos mesmos objetos e na qual o conceito desses objetos pode ser determi¬nado “a priori”? Isso só pode acontecer sob a condição de que ela tenha sua sede no sujeito, com a capacidade formal que ele tem de ser afetado por objetos e de receber assim uma representação imediata, quer dizer, uma intuição, por conse¬guinte como forma do sentido exterior em geral.

Nossa explicação é a única que torna compreensível a possibilidade da Geometria como ciência sintética. Toda explicação que não oferece essa vantagem pode ser por esse sinal distinguida da nossa, por maior semelhança que com ela apresente.

Consequências dos conceitos precedentes

a) O espaço não representa nenhuma propriedade das coisas, já consideradas em si mesmas, ou em suas relações entre si, quer dizer, nenhuma determinação que dependa dos objetos mesmos e que permaneça neles se se faz abstração de todas as condições subjetivas da intuição; porque nem as determinações absolutas, nem as relativas podem ser percebidas antes da existência das coisas a que pertencem, e por conseguinte “a priori”.

b) O espaço não é mais do que a forma dos fenômenos dos sentidos externos, quer dizer, a única condição subjetiva da sensibilidade, mediante a qual nos é possível a intuição externa. E como a propriedade do sujeito de ser afetado pelas coisas precede necessariamente a todas as intuições das mesmas, compreende-se facilmente que a forma de todos os fenômenos pode achar-se dada no espírito antes de toda percepção real, e, consequentemente, “a priori”. Mas como seja uma intuição pura onde todos os objetos devem ser determinados, ela pode conter anteriormente a toda experiência os princípios de suas relações.

Não podemos, pois, falar de espaço, de seres extensos etc., senão debaixo do ponto de vista do homem. Nada significa a representação do espaço, se saímos da condição subjetiva, única sob a qual podemos receber a intuição externa, quer dizer, ser afetados pelos objetos.

Este predicado só convém às coisas, enquanto elas nos aparecem a nós, quer dizer, enquanto são objetos da sensibilidade. A forma constante desta receptividade, que denominamos sensibilidade, é a condição necessária de todas as relações, em que os objetos são intuídos como exteriores a nós outros; e se dita forma for abstraída dos objetos é então uma intuição pura, que toma o nome de Espaço.

Como as condições particulares da sensibilidade não são as condições da possibilidade das coisas mesmas, senão somente as de seus fenômenos, bem podemos dizer que o espaço compreende todas as coisas que nos aparecem exteriormente; mas não todas as coisas em si mesmas, quer sejam ou não percebidas e qualquer que seja o sujeito que as perceba; porque de modo algum poderemos julgar as intuições dos outros seres pensantes, nem saber se se acham sujeitas às mesmas condições que limitam as nossas intuições, e que têm para nós um valor universal.

Se acrescentamos ao conceito do sujeito a limitação de um juízo, então nosso juízo tem um valor absoluto ou incondicionado. Esta proposição: todas as coisas estão justapostas no espaço, vale sob esta restrição: desde que tais coisas sejam to¬madas como objetos da nossa intuição sensível; se eu adito a condição ao conceito e digo: todas as coisas, como fenômenos externos, estão justapostas no espaço, essa regra valerá universalmente e sem restrição alguma.

Nosso exame do espaço mostra-nos a sua realidade, quer dizer, o seu valor objetivo relativamente a tudo aquilo que se pode apresentar-nos como objeto; mas ao mesmo tempo, também, a idealidade do espaço relativamente às coisas consideradas em si mesmas pela razão, quer dizer, sem atender à natureza de nossa sensibilidade.

Afirmamos, pois, a realidade empírica do es¬paço em relação a toda experiência externa possível; mas reconhecemos também a idealidade transcendente do mesmo, quer dizer, a sua não existência, desde o momento em que abandona¬mos as condições de possibilidade de toda experiência e cremos seja ele algo que serve de fundamento às coisas em si.

Excetuando o espaço, não existe nenhuma representação subjetiva que se refira a qualquer coisa de externo, e que possa dizer-se objetiva “a priori”, porque de nenhuma delas podem derivar-se proposições sintéticas “a priori”, como aquelas que derivam da intuição no espaço. Para falar exatamente, nenhuma idealidade lhes corresponde, ainda que tenham em comum com o espaço a sua dependência unicamente da constituição subjetiva da sensibilidade, por exemplo: da vista, do ouvido, do tato; mas as sensações de cores, dos sons, do calor, sendo puras sensações e não intuições, não nos fazem por si mesmas qualquer objeto, pelo menos “a priori”.

O fim desta observação é somente impedir que se explique a idealidade atribuida ao espaço por exemplos inadequados, como as cores, o sabor etc., que se considera, com razão, não como propriedade das coisas, mas sim como modificações do indivíduo, e que podem ser muito diferentes, como o são os indivíduos.

Neste último caso, com efeito, aquilo que não é originariamente senão um fenômeno, por exemplo, uma rosa tem, no sentido empírico, o valor de uma coisa em si, se bem que, quanto à cor, possa a parecer diferente aos diferentes olhos. Pelo contrário, o conceito transcendental dos fenômenos no espaço nos sugere esta observação crítica, de que em geral nada do que é intuído no espaço, é coisa em si; e, ainda, que o espaço não é uma forma das coisas consideradas em si mesmas, mas que os objetos não nos são conhecidos em si mesmos e aquilo que denominamos objetos exteriores consiste em simples representações de nossa sensibilidade cuja forma é o espaço, mas cujo verdadeiro correlativo, a coisa em si, permanece desconhecida e incognoscível, jamais sendo indagada da experiência.
________________________________________
Segunda Seção
Da Estética Transcendental do Tempo
4 - Exposição metafísica do conceito de tempo

1.° O tempo não é um conceito empírico derivado de experiência alguma, porque a simultaneidade ou a sucessão não seriam percebidas se a representação “a priori” do tempo não lhes servisse de fundamento. Só sob esta suposição podemos representar-nos que uma coisa seja ao mesmo tempo que outra (simultânea), ou em tempo diferente (sucessiva).

2.° O tempo é uma representação necessária que serve de base a todas as intuições. Não se pode suprimir o tempo nos fenômenos em geral, ainda que se possa separar, muito bem, estes daquele. O tempo, pois, é dado “a priori”. Só nele é possível toda realidade dos fenômenos. Estes podem todos desaparecer; mas o tempo mesmo, como condição geral de sua possibilidade, não pode ser suprimido.

3.° Nesta necessidade “a priori” se funda também a possibilidade dos princípios apodíticos, das relações ou axiomas do tempo em geral, tais como o tempo não mais que uma dimensão; os diferentes tempos não são simultâneos, mas sucessivos (enquanto que espaços diferentes não são sucessivos mas sim simultâneos). Estes princípios não são deduzidos da experiência, porque esta não pode dar uma estrita universalidade nem uma certeza apodítica.

Poderíamos dizer: assim o ensina a observação geral; e não: isto deve ser assim. Estes princípios têm, pois valor como regras, que tornam a experiência possível em geral, pois são elas que nos proporcionam o conhecimento da experiência.

4.° O tempo não é nenhum conceito discursivo ou, como se diz, geral, mas uma forma pura da intuição sensível. Tempos diferentes não são senão partes de um mesmo tempo. Ora, uma representação que só pode ser dada por um objeto único, é uma intuição.

Assim a proposição: tempos diferentes não podem ser simultâneos, não se deriva de um conceito geral. Ela é uma proposição sintética que não pode derivar somente de conceitos. Acha-se pois contida imediatamente na intuição e representação do tempo.

5.° A natureza infinita do tempo significa que toda quantidade determinada de tempo é somente possível pelas limitações de um único tempo que lhes serve de fundamento. Portanto, a representação primitiva do tempo deve ser dada como ilimitada. Ora, quando as partes mesmas e quantidades todas de um objeto só podem ser representadas e determinadas por meio de uma limitação, então a representação toda desse objeto não pode ser dada por conceitos (porque estes só contém representações parciais) devendo ter como fundamento uma intuição parcial.

5 - Exposição transcendental do conceito de tempo

Para explicar este ponto, posso reportar-me ao número 3 precedente, onde, para ser breve, coloquei o que propriamente é transcendental, sob o titulo de exposição metafísica. Aqui somente acrescento que os conceitos de mudança e de movimento (como mudança de lugar), só são possíveis por e na representação do tempo, e que se essa representação não fosse uma intuição (interna) “a priori”, não houve a possibilidade de uma mudança, quer dizer, a possibilidade de união de predicados opostos contraditoriamente em um só e mesmo objeto (por exemplo, que uma mesma coisa esteja e não esteja em um lugar).

Somente no tempo podem encontrar-se essas duas determinações contraditoriamente opostas em uma mesma coisa, quer dizer, só na sucessão. Explica, pois, nosso conceito de tempo, a possibilidade de tantos conhecimentos sintéticos “a priori”, como expõe a ciência geral do movimento, que não é pouco fecunda.

6 - Corolários destes conceitos

a) O tempo não subsiste por si mesmo, nem pertence às coisas como determinação objetiva que permaneça na coisa mesma uma vez abstraídas todas as condições subjetivas de sua intuição. No primeiro caso, o tempo, sem objeto real, seria sem embargo algo real; no segundo, sendo uma determinação das coisas mesmas, ou uma ordem estabelecida, não poderia preceder aos objetos com sua condição, nem ser conhecido e percebido “a priori” por proposições sintéticas.

Mas este último tem lugar se o tempo não é mais flue a condição subjetiva sob a qual são pos¬síveis em nós as intuições; porque, então, esta forma da intuição interna pode ser representada anteriormente aos objetos, e por conseguinte “a priori”.


b) O tempo é a forma do sentido interno, que quer dizer, da intuição de nós outros mesmos e de nosso estado interior. O tempo não pode ser determinação alguma dos fenômenos externos, não pertence nem a uma figura, nem a uma posição, pois ele determina a relação das representações em nossos estados internos.

E como esta intuição interior não forma figura alguma, procuramos suprir esta falta pela analogia e representamos a sucessão do tempo por uma linha prolongável até o infinito, cujas diversas partes constituem uma série de uma só dimensão, e derivamos das propriedades desta linha todas as do tempo, excetuando só uma, a saber: que as partes das linhas são simultâneas, enquanto que as do tempo são sempre sucessivas. Donde se deduz também que a representação do tempo é uma intuição, porque todas as suas relações podem ser expressas por uma intuição exterior.


c) O tempo é a condição formal “a priori” de todos os fenômenos em geral. O espaço, como forma pura de todas as intuições externas, só serve, como condição “a priori”, para os fenômenos exteriores. Pelo contrário, como todas as representações, tenham ou não por objeto coisas exteriores, pertencem, não obstante, por si mesmas, como esse estado, sob a condição formal da intuição interna, pertence ao tempo, é o tempo uma condição “a priori” de todos os fenômenos interiores (de nossa alma) e a condição imediata dos fénômenos externos.

Se posso dizer “a priori”: todos os fenômenos exteriores estão no espaço e são determinados “a priori” segundo as relações do espaço, posso afirmar também em um sentido geral e partindo do princípio do sentido interno: todos os fenômenos em geral, quer dizer, todos os objetos dos sentidos estão no tempo, e estão necessariamente sujeitos às relações do tempo.

O tempo é um pensamento vazio (nada) se fazemos abstração de nossa maneira de intuição interna, do modo como compreendemos todas as intuições exteriores em nossa faculdade de representar (mediante essa intuição), e tomamos, por conseguinte, os objetos tais como podem ser em si mesmos. O tempo tem um valor objetivo somente em relação aos fenômenos porque estes são coisas que consideramos como objetos de nossos sentidos; mas deixa de ter esse valor objetivo quando se faz abstração da sensibilidade de nossa intuição (por conseguinte, desta espécie de representação que nos é própria), quando se fala de coisas em geral.

O tempo, que não é senão uma condição subjetiva de nossa intuição geral (sempre sensível, quer dizer, só se produz quando somos afetados pelos objetos), considerado em si mesmo e fora do sujeito, não é nada. É, não obstante, necessariamente objetivo em relação a todos os fenômenos, e por conseguinte, também a todas as coisas que a experiência pode oferecer-nos. Não podemos dizer: todas as coisas existem no tempo, porque, no conceito de coisas em geral, faz-se abstração de toda maneira de intuição dessas coisas e sendo esta propriamente a condição pela qual o tempo pertence à representação dos objetos.

Mas se esta condição se acrescenta ao con¬ceito e se diz: todas as coisas, como fenômenos (objetos da intuição sensível), existem no tempo, então tem esse princípio o seu exato valor objetivo e a sua universalidade “a priori”.

As nossas considerações mostram a realidade empírica do tempo, quer dizer, o seu valor objetivo relativamente a todos os objetos que possam oferecer-se aos nossos sentidos. E como a nossa in¬tuição é sempre sensível, não pode nunca oferecer-se a nós outros um objeto na experiência, que. não seja sujeito às condições do tempo.

Contestamos, portanto, toda pretensão da realidade absoluta do tempo, a saber: a que o considera, sem atender à forma da nossa intuição sensível, como absolutamente inerente às coisas, quer dizer, como condição ou propriedade. Tais propriedades que pertencem às coisas em si, não podem nunca ser dadas pelos sentidos.

Cumpre admitir a idealidade transcendental do tempo, no sentido de que se se abstraem as condições subjetivas da intuição sensível, não é absolutamente nada não podendo ser atribuida, tampouco, as coisas em si mesmas (independentemente de toda relação com a nossa intuição).

Todavia, esta idealidade, a mesma que a do espaço, não deve ser comparada aos dados subjetivos das sensações, porque aqui se supõe que o fenômeno mesmo a que se unem estes atributos tem uma realidade objetiva; a realidade que falta completamente aqui, a não ser que se considere só empiricamente, quer dizer, seja a título de substância, seja a título de qualidade. Veja-se sobre isto a observação da primeira seção.

RETORNAR AO ÍNDICE DE CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Crítica da Razão Pura - Kant - Parte Primeira - 07 e 08

CRÍTICA DA RAZÃO PURA - KANT

PARTE PRIMEIRA
DA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDENTAL



7 - Explicação

Contra esta teoria, que admite a realidade empírica do tempo, combatendo a sua realidade absoluta e transcendental, homens doutos formularam-me uma objeção, que me parece ocorra ao comum dos leitores, pouco familiarizados com estes assuntos. Tal é a objeção: há mudanças reais (o que é provado pela sucessão de nossas representações, querendo-se negar os fenômenos externos e suas mudanças); ora, a mudança das representações não é possível senão no tempo; logo, o tempo é qualquer coisa de real.

A resposta não é difícil: aceito todo o argumento. O tempo, não resta dúvida, é qualquer coisa de real: é, com efeito, a forma real da intuição interna. Possui, pois, uma realidade subjetiva em relação à experiência interna: quer dizer, tenho realmente a representação do tempo e de minhas próprias determinações nele.

Conseqüentemente, o tempo não é real como objeto. Mas, se eu mesmo ou um outro ente me pudesse perceber sem esta condição da sensibilidade, estas mesmas determinações que nós nos representamos atualmente como mudanças nos dariam um conhecimento em que não se encon¬trará mais a representação do tempo, nem, por conseguinte, a de mudança, não existiriam. Sua realidade empírica permanece, pois, como condição de todas as nossas experiências. Mas a realidade absoluta não se pode, segundo vimos, conceder ao tempo.

Ele não é mais do que a forma de nossa intuição interna. Se se tira desta intuição a condição especial de nossa sensibilidade, desaparece igualmente o conceito de tempo, porque esta forma não pertence aos objetos mesmos, mas ao sujeito que os percebe.

Porém a causa, pela qual tal objeção é formu¬lada tão concordemente, entre os que nada têm a opor contra a idealidade do espaço, é esta: é que não esperavam poder demonstrar apoditicamente a realidade absoluta do espaço, inibidos, pelo idealismo, segundo o qual a realidade dos objetos exteriores não é suscetível de nenhuma demonstração rigorosa, enquanto que a do objeto do nosso sentido interno (de mim mesmo e de meu estado) lhes parecia imediatamente claro pela consciência.

Aqueles poderiam ser simples aparência; mas este, a seu juízo, é inegavelmente qualquer coisa real. Entretanto, os partidários de tal opinião olvidam que essas duas classes de objetos, sem necessidade de combater sua realidade como representações, pertencem somente ao fenômeno, que tem sempre dois aspectos: um, quando o objeto é considerado em si mesmo (prescindindo da maneira de percebê-lo, cuja natureza permanecerá sendo sempre problemática); outro, quando se considera a forma da intuição deste objeto, forma que não deve ser buscada no objeto em si, mas no sujeito, a quem aparece, e que, não obstante, pertence real e necessariamente ao fenômeno que esse objeto manifesta. São, pois, tempo e espaço duas fontes de conhecimentos, de que podem derivar-se “a priori” diferentes conhecimentos sintéticos, como mostra o exemplo das matemáticas puras, respeito ao conhecimento do espaço e de suas relações.

Eles são, ambos, formas puras de toda intuição sensível que tornam possíveis as proposições sintéticas “a priori”. Mas estas fontes do conhecimento “a priori”, pela mesma razão de que só são simples condições da sensibilidade, determinam o seu próprio limite, enquanto se referem aos objetos, considerados como fenômenos, e não representam coisas em si. O valor “a priori” de ditas fontes se limita aos fenômenos; não tem aplicação objetiva fora dos mesmos.

Esta realidade formal do tempo e do espaço deixa intata a seguridade do conhecimento experimental, porque estamos igualmente certos desse conhecimento, quer essas formas sejam necessariamente inerentes às coisas em si, quer somente à nossa intuição das coisas.

Pelo contrário, aqueles que sustentam a realidade absoluta do espaço e do tempo, quer os tomem como subsistentes por si mesmos, quer como inerentes nos objetos, acham-se em contradição com os princípios da experiência. Se se decidem pelo primeiro e tomam espaço e tempo como subsistentes por si mesmos (partido comumente seguido pelos fisico-matemáticos), têm que admitir necessariamente duas quimeras (espaço e tempo), eternas e infinitas, que só existem (sem que seja algo real) para compreender em seu seio tudo quanto é real.

Aceitando a segunda opinião seguida por alguns metafísicos da natureza, que consiste em considerar tempo e espaço como relações de fenômenos (simultâneos no espaço e sucessivos no tempo), abstraídos da experiência, ainda que confusamente representados nessa abstração, é preciso negar a validade das teorias matemáticas “a priori” das coisas reais (p. ex., no espaço); ou pelo menos sua certeza apoditica, posto que não possa ser esta achada “a posteriori”.

De igual modo, os conceitos “a priori” de espaço e tempo, segundo esta opinião, seriam só criação da fantasia cuja verdadeira fonte deve buscar-se na experiência, porque de suas relações abstraídas se tem valido fantasia para formar algo que contenha o que de geral há nela, ainda que sem as restrições que a natureza lhes tem posto.

Os primeiros têm a vantagem de deixar livre o campo dos fenômenos para as proposições matemáticas; mas essas mesmas condições os embaraçam em extremo quando o entendimento quer sair deste campo.

Os segundos têm neste último ponto a vantagem de que as representações de espaço e tempo não os detêm, quando quer julgar os objetos, não como fenômenos, mas em sua relação com o entendimento; mas não podem nem dar um fundamento das possibilidades dos conhecimentos matemáticos “a priori”, faltando-lhes uma verdadeira intuição objetiva “a priori”, nem tampouco conduzir a uma conformidade necessária as leis da experiência e aquelas asserções.

Em nossa teoria da verdadeira natureza destas duas formas primitivas da sensibilidade ficam resolvidas ambas as dificuldades. Finalmente é óbvio que a Estética transcendental não pode conter mais do que esses elementos, a saber: espaço e tempo, posto que todos os outros conceitos, que pertencem à sensibilidade, mesmo o de movimento que reúne os dois anteriores, implicam algo empírico, porque o movimento supõe a percepção de algo movível.

O espaço considerado em si mesmo não tem nada de movível: o movível deve ser, pois, algo que somente se encontra pela experiência no espaço, e, conseguintemente, um dado empírico. A Estética transcendental não pode tampouco contar entre os seus dados “a priori” o conceito de mudança; porque o tempo mesmo não muda, mas sim algo que existe no tempo. Necessita-se, pois, para isso, a percepção de uma certa coisa e da sucessão de suas determinações, por conseguinte, da experiência.


8 - Observações gerais sobre a Estética transcendental

I – Com o fim de evitar erros e más interpretações neste assunto, devemos explicar claramente nossa opinião sobre a natureza fundamental do conhecimento sensível em geral.

Temos querido provar que todas as nossas in¬tuições só são representações de fenômenos, que não percebemos as coisas como são em si mesmas, nem são as suas relações tais como se nos apresentam, e que se suprimíssemos nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva dos nossos sentidos em geral, desapareceriam também todas as propriedades, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e também o espaço e o tempo, porque tudo isto, como fenômeno, não pode existir em si, mas somente em nós mesmos.

Para nós é completamente desconhecida qual possa ser a natureza das coisas em si, independentes de toda receptividade da nossa sensibilidade. Não conhecemos delas senão a maneira que temos de percebê-las; maneira que nos é peculiar; mas que tão pouco deve ser necessariamente a de todo ser, ainda que seja a de todos os homens.

É a esta maneira de perceber que nos ateremos, unicamente.

Tempo e espaço são as formas puras desta percepção, e a sensação, em geral, a sua matéria. Só podemos conhecer “a priori” as formas puras do espaço e do tempo, quer dizer, antes de toda percepção efetiva, e por isso se denomina intuição pura; a sensação, pelo contrário, é que faz ser o nosso conhecimento “a posteriori”, quer dizer, in¬tuição empírica. Aquelas formas pertencem absoluta e necessariamente à nossa sensibilidade, e qualquer espécie que sejam as nossas sensações; estas podem ser mui diversas.

Por mais alto que fosse o grau de clareza que pudéssemos dar à nossa intuição, nunca nos aproximaríamos da natureza das coisas em si; porque em todo caso só conheceríamos perfeitamente nossa maneira de intuição, quer dizer, nossa sensibilidade, e isto sempre sob as condições de tempo e espaço originariamente inerentes no sujeito.

O mais perfeito conhecimento dos fenômenos que é o único que nos é dado atingir, jamais nos proporcionará o conhecimento dos objetos em si mesmos.

Desnaturam-se os conceitos de sensibilidade e de fenômeno inutilizando e destruindo toda a doutrina do conhecimento, quando se quer que toda a nossa sensibilidade consista na representação confusa das coisas, representação que conteria absolutamente tudo o que elas são em si, ainda que sob a forma de um amontoado de caracteres e representações parciais, que não distinguimos claramente uns de outros.

A diferença entre uma representação obscura e outra clara é puramente lógica, e não se refere ao seu conteúdo.

Sem dúvida, o conceito de direito, empregado pela sã inteligência comum, contém tudo o que a mais sutil especulação pode desenvolver do mesmo, ainda que no uso prático e comum não se tenha consciência das diversas representações contidas nesse conceito. Mas não se pode dizer por isto que o conceito vulgar seja sensível e não designe senão um simples fenômeno; porque o direito não poderia ser um objeto de percepção, pois o seu conceito existe no entendimento e representa uma qualidade (a moral) das ações, que elas possuem em si mesmas.


Pelo contrário, a representação de um corpo na intuição não contém absolutamente nada que propriamente possa pertencer a um objeto em si, mas somente o fenômeno (a manifestação) de alguma coisa e a maneira de como nos afeta.

Ora, esta receptividade de nossa faculdade de conhecer, que se denomina sensibilidade, permanece sempre profundamente distinta do conhecimento do objeto em si, ainda que se pudesse penetrar o fenômeno até o seu âmago. A filosofia leibnitzwolfiana adotou, nas suas indagações sobre a natureza e origem dos nossos conhecimentos, um ponto de vista errôneo, ao considerar como exclusivamente lógica a diferença entre a sensibilidade e o entendimento.

Tal diferença é claramente transcendental, e não se refere só à clareza ou obscuridade, mas também à origem e conteúdo de nossos conhecimentos; de tal sorte que, mediante a sensibilidade, não conhecemos de nenhuma maneira as coisas em si mesmas. Desde o momento em que fazemos abstração de nossa natureza subjetiva, o objeto representado e as propriedades que lhe atribuímos mediante a intuição desaparecem; porque a natureza subjetiva é precisamente quem determina a forma desse objeto como fenômeno.

Por outro lado, sabemos distinguir muito bem nos fenômenos o que pertence essencialmente à intuição dos mesmos, e vale em geral para todo o sentido humano, daquilo que só lhe pertence de modo acidental, e que não vale para toda relação em geral da sensibilidade, mas unicamente para a posição particular ou organização deste ou daquele sentido. Do primeiro conhecimento se diz que representa a coisa em si e do segundo que representa meramente o fenômeno. Porém essa diferença é só empírica. Se se permanece nela (como comumente acontece) e não se considera novamente aquela intuição empírica (conforme deverá suceder) como um puro fenômeno, no qual não se encontra nada que pertença a uma coisa em si, desaparece então a nossa distinção transcendental e cremos conhecer as coisas em si, ainda que nas mais profundas investigações do mundo sensível, só possamos ocupar-nos de fenômenos.

Assim; por exemplo, se dissermos do arco-iris que ele é um simples fenômeno que se mostra na chuva iluminada pelo sol, e da chuva que é uma coisa em si, essa maneira de falar é exata, desde que entendemos a chuva em um sentido físico, quer dizer, como uma coisa que, na experiência geral, é determinada de tal modo e não diversamente, quaisquer que sejam as disposições dos sentidos.

Entretanto, se tomamos esse fenômeno empírico de uma maneira geral, e sem nos ocuparmos de seu acordo com todos os sentidos humanos, perguntarmos se ele representa também um objeto em si (não direi das gotas de chuva, porque são já, como fenômenos, objetos empíricos), a questão da relação entre a representação e o objeto vem a ser transcendental. Não somente essas gotas de chuva são simples fenômenos, mas mesmo a sua forma e até o espaço em que tombam nada são em si; não passam de modificações ou de disposições de nossa intuição sensível.

Quanto ao objeto transcendental, permanece completamente ignorado por nós.

Outra importante advertência de nossa Estética transcendental é que não merece ser recebida somente como uma hipótese verossímil, mas como um valor tão certo e seguro como pode exigir-se de uma teoria que deve servir de orgânon. E para tornar completamente evidente esta certeza, escolhamos um caso que mostre visivelmente o seu valor e possa dar luz ao que já foi dito no número 3.

Suponho que o espaço e o tempo existem em si objetivamente e como condições da possibilidade das coisas em si, uma primeira dificuldade se apresenta. Nós tiramos “a priori” de um e doutro, mas particularmente do espaço, que aqui tomamos, como principal exemplo, um grande número de proposições apodíticas e sintéticas.

Posto que as proposições da Geometria são conhecidas sinteticamente “a priori” e com uma certeza apodítica, pergunto: de onde tomais semelhantes proposições e em que se apóia o nosso entendimento para chegar a essas verdades absolutamente necessárias e universalmente válidas?

Só existem dois meios para elas: os conceitos e as intuições. Tais meios nos são fornecidos “a priori” ou “a posteriori”.

Os conceitos empíricos e o seu fundamento, ou seja, a intuição empírica, nunca podem fornecer-nos outras proposições sintéticas além das empíricas e de que caracterizam todas as proposições da Geometria.

O outro meio restante consistiria em alcançar esses conhecimentos com simples conceitos ou in¬tuições “a priori”; mas resulta que de simples conceitos não se pode chegar a nenhum conhecimento sintético, pois só permitem conhecimentos analíticos. Tomai, por exemplo, a proposição: entre duas linhas retas não pode encerrar-se um espaço e, por conseguinte, não é possível figura alguma; procurai deduzi-la dos conceitos de reta e do número dois. Tomai outro exemplo: uma figura é possível com três linhas retas, e intentai deduzi-la desses mesmos conceitos.

Todos os vossos esforços seriam inúteis, e vos verieis necessitados de recorrer à intuição, que é o que sempre fez a Geometria.

Dai-nos um objeto na intuição; mas de que espécie é essa intuição? É ela pura, “a priori”, ou empírica? Se fosse esta última, nunca poderia provir dela uma proposição universal, e menos ainda, uma apodítica porque, mediante a experiência, não podem ter esta necessidade e esta universalidade que, sob esse título de proposições experimentais, não se podem jamais conseguir de semelhante natureza.

Ver-vos-eis obrigados a dar “a priori” vosso objeto na intuição e fundar nele vossa proposição sintética. Se não existisse em vós uma faculdade de intuição “a priori”, e se esta condição subjetiva, quanto à forma, não fosse ao mesmo tempo a geral condição “a priori”, única que torna possível o objeto desta intuição (externa) mesma; se fosse, enfim, o objeto (o triângulo) algo em si mesmo e alheio a toda relação com vosso sujeito, como podei-íeis dizer que o que é necessário em vossas condições subjetivas para construir um triângulo deve também pertencer imprescindivelmente ao triângulo em si?

Porque vós não podeis acrescentar aos vossos conceitos (de três linhas) nada de novo (a figura), que necessariamente deva encontrar-se no objeto porque esse objeto é dado anteriormente ao nosso conhecimento e não por ele. Se não fosse, pois, o espaço (e mesmo o tempo) uma forma pura de vossa intuição, que contém as condições “a priori”, as únicas que podem fazer com que sejam para vós as coisas objetos exteriores, e que sem esta condição subjetiva não são nada em si, não poderíeis determinar nada sinteticamente “a priori” dos objetos externos. É portanto indubitavel¬mente certo, e não só verossímil ou possível, que espaço e tempo, como condições necessárias para toda experiência (interna e externa) não são mais do que condições puramente subjetivas de todas as nossas intuições, e que a este respeito todos os objetos são somente fenômenos e não coisas em si dadas desta maneira.

Destes pode dizer-se muito “a priori”, referente à forma desses objetos; mas nada da coisa em si mesma que possa servir de fundamento a esses fenômenos.


II – Para confirmar esta teoria da idealidade e do sentido interno e externo e, conseqüentemente, de todos os objetos do sentido, como puros fenômenos, pode-se todavia observar que tudo o que pertence à intuição em nosso conhecimento (excetuando o sentimento de prazer, de dor e a vontade, que não são conhecimentos) não contém mais que simples relações: relações de lugar em uma intuição (extensão), de mudança de lugar (movimento) e de leis que determinam essa mudança (forças motrizes).

Mas o que está presente no lugar ou o que atua nas coisas mesmas fora da mudança de lugar não está dado na intuição. Pois bem; como pelas simples relações não pode ser conhecida uma coisa em si, é justo julgar que o sentido externo, que só nos fornece simples representações de relações, não possa compreender em sua representação mais do que a relação de um objeto com o sujeito, e não o que é próprio ao objeto e lhe pertence em si.

O mesmo sucede com a intuição interna. Não são só as representações dos sentidos externos que constituem a matéria própria com que enriquecemos nosso espírito, porque o tempo (no qual colocamos estas representações, e que precede à consciência das mesmas na experiência, servindo-lhes de fundamento como condição formal da maneira que temos de dispô-las em nosso espírito) compreende já relações de sucessão, de simultaneidade, e do que é simultâneo com o sucessivo (permanen¬te)

Ora, tudo o que pode, como representação, preceder a todo ato de pensamento, é a intuição; e como ela não contém senão relações, a firma da intuição, que não representa nada até que alguma coisa seja dada no espírito, não pode ser outra coisa mais do que a maneira segundo a qual o espírito foi afetado por sua própria atividade, ou por esta posição de sua representação, por conseguinte, por si mesmo, quer dizer, um sentido interno considerado em sua forma.

Tudo o que é representado por um sentido é sempre um fenômeno, e, por conseguinte, ou não deve reconhecer-se um sentido interno, ou o sujeito que é objeto do mesmo não pode ser representado por este sentido interno senão como um fenômeno, e não como ele se julgaria a si mesmo, se sua intuição fosse simplesmente espontânea, quer dizer: intelectual. Toda a dificuldade consiste em saber-se como um sujeito pode perceber-se intuitivamente a si mesmo; mas esta dificuldade é comum a todas as teorias.

A consciência de si mesmo (apercepção) é a representação simples do eu; e se tudo que existe de diverso no sujeito fosse dado espontaneamente nesta representação, a intuição interna seria ente intelectual. Esta consciência exige no homem uma percepção interna diversa, previamente dada no sujeito, e o modo segundo o qual é dada no espírito sem alguma espontaneidade deve, em virtude dessa diferença, chamar-se sensibilidade.

Para que a faculdade de ter consciência de si mesmo possa descobrir (apreender) aquilo que está no espírito, cumpre que aquele seja afetado: só sob esta condição podemos ter a intuição de nós mesmos; mas a forma desta intuição, existindo previamente no espírito, determina na representação do tempo a maneira de compor a diversidade no espírito; ele se percebe intuitivamente, não como se representara a si mesmo imediatamente e em virtude de sua espontaneidade, mas segundo a maneira pela qual ele é intuitivamente afetado, e, por conseguinte, tal como ele se oferece a si próprio e não como é.


III – Ao afirmar que a intuição dos objetos exteriores, e a que o espírito tem de si mesmo, representam, no espaço e no tempo, cada uma de per si, seu objeto, tal como este afeta os nossos sentidos, isto é, segundo nos aparecem, não quero dizer que esses objetos sejam mera aparência. E sustentamos isto, porque, no fenômeno, os objetos e também as propriedades que lhe atribuímos são sempre considerados como algo dado realmente; somente, como essas qualidades dependem unicamente da maneira de intuição, do sujeito em sua relação com o objeto dado, este objeto, como manifestação de si mesmo, é distinto do que ele é em si.

Assim, não digo que os corpos parecem existir simplesmente fora de mim, ou que minha alma só parece estar dada em minha consciência, quando afirmo que a qualidade do tempo e do espaço, segundo me represento e onde coloco a condição de sua existência, existe em meu modo de intuição e não nos objetos em si. Seria culpa minha se o que deve considerar-se como fenômeno fosse tido como uma pura aparência.(3)

Mas isto não se dá com o nosso princípio de idealidade de todas as nossas intuições sensíveis; concedendo-se, pelo contrário, uma realidade objetiva a essas formas da representação, tudo inevitavelmente se converte em pura aparência. Ao considerar tempo e espaço como qualidades que devem encontrar-se nas coisas em si para sua possibilidade, reflita-se nos absurdos a que chegam, admitindo duas coisas infinitas sem ser substâncias, nem algo realmente inerente nelas, mas que devem ser algo existente para condição necessária de existência para todos os objetos, e que subsisti¬riam ainda mesmo que cessassem de existir todas as coisas.

Não se deve censurar ao bom Berkeley, por ter reduzido tudo à aparência. Nossa própria existência, dependente em tal caso da realidade subsistente em si de uma quimera, tal como o tempo, será como este uma vá aparência: absurdo que até agora ninguém ousou sustentar.


IV – Na Teologia natural, em que se concebe um objeto que não só não pode ser para nós outros objeto de intuição, nem tampouco o pode ser de nenhuma intuição sensível, distingue-se cuidadosamente de sua própria intuição as condições de espaço e tempo (digo de sua intuição, porque todo o seu conhecimento deve ter este caráter e não o de pensamento, que supõe limites).

Mas, com que direito se procede assim, uma vez que se consideram espaço e tempo como formas dos objetos em si, e formas tais que subsistiriam como condições “a priori” da existência das coisas, ainda que estas desaparecessem? Se são condições de toda existência em geral, devem ser também da existência de Deus.

Se não são, pois, considerados espaço e tempo como formas objetivas de todas as coisas, é indispensável tê-los por formas subjetivas de nosso modo de intuição, tanto interna como externa. E afirmamos de tais intuições a sua qualidade de sensíveis, porque não são tais que por si sós produzam a existência real do objeto (cujo modo de intuição cremos que só pode pertencer ao ser supremo), mas que depende da existência do objeto e só são possíveis sendo afetada a faculdade representativa do sujeito.

Tampouco é necessário que limitemos a maneira de conhecer por intuição pelas quais representamos as coisas no espaço e no tempo, à sensibilidade humana. Quiçá todos os seres finitos, pensantes, conformem necessariamente nisto com os homens (ainda que nada possamos decidir neste particular); mas nem por essa universalidade deixará a intuição de ser sensibilidade, porque é derivada (intuitus derivatus) e não primitiva (intuitus originarius), e, por conseguinte, não é intuição intelectual, como a que parece pertencer tão-só ao ser supremo pelas razões antes indicadas e não um ser independente, tanto pela sua existência como pela sua intuição (que determina a sua existência em relação com os objetos dados). Esta última observação não deve ser con¬siderada mais do que um esclarecimento e não como uma prova de nossa teoria estética.

Conclusão da Estética transcendental

Já possuímos um dos dados requeridos para a solução do problema geraAdicionar imageml da Filosofia transcendental: como são possíveis as proposições sintéticas “a priori”?

Quer dizer, estas intuições puras “a priori”: espaço e tempo. Quando em nosso juízo “a priori” queremos sair do conceito dado, encontramos algo que pode ser descoberto “a priori” na intuição correspondente e não no conceito, e que pode ser enlaçado sinteticamente a este conceito; mas juízos que, por esta razão, só alcançam aos objetos dos sentidos e só valem para os da experiência.


RETORNAR AO ÍNDICE DE CRÍTICA DA RAZÃO PURA